ESCREVE DANIEL SERVÍDIO
Histórias de um velho palmeirense
É mais um domingo. Um domingo como qualquer outro, mas não um domingo qualquer. Seu Francisco acordou cedo, às 8h, assim como faz todos os dias, desde sua aposentadoria.
Com o rosto cheio de rugas e o corpo cheio de disposição, tomou um rápido gole de café, enquanto olhou o velho calendário pendurado na parede. Era 26 de agosto, data de seu aniversário. Vestiu uma camiseta verde, colocou comida e água para o periquito na gaiola, pegou a carteira na escrivaninha e foi caminhar.
Mesmo no inverno, o sol brilhava na Barra Funda, onde Seu Francisco vive há muito tempo. Foi lá que ele passou poucas e boas – mas que julgava muitas e ótimas.
Como de costume, passou na banca de jornal. Comprou o Lance!. Certo de sua sorte, resolveu apostar no jogo do bicho. Escolheu o porco – animal que, desde 1986, aparece em muitos dos seus sonhos.
Seu Francisco logo foi ao bar da rua Palestra Italia, a qual ele ainda tem ímpetos de chamar de Turiaçu. Na noite anterior, havia comido pizza e bebido um bom vinho. No domingo, queria macarronada, mas também estava louco por uma caipirinha. É que ele era brasileiro, mas com sangue italiano. Seus pais vieram do país europeu e, em 1914, ele nasceu.
Sem falar muito sobre idade, juntou-se com os amigos e, nostálgico por conta do próprio aniversário, começou a contar as histórias que vivera até ali.
Contou que seus pais, quando chegaram ao Brasil, tinham o objetivo de se estabelecer por aqui. Lutaram, trabalharam e construíram família.
Ele foi o primeiro filho. Era uma criança muito bonita, que começou a encantar a todos pela cidade. Com apenas seis anos já dava mostras de que nascera para brilhar.
Na adolescência, começou a jogar partidas de sinuca. Com apenas 20 anos, foi tricampeão estadual. Com entusiasmo, ele conta que, em 1933, enfrentou uma figura muito popular na cidade. Eram 15 bolas na mesa – e o vencedor seria quem conseguisse encaçapar mais. Francisco matou oito bolas, o adversário, zero.
Como todo jovem que começa a fazer sucesso, passou a sofrer com a perseguição alheia. Recebeu muita pressão das pessoas que comandavam o país. Eles não aceitavam muito bem a ascendência do rapaz. Outros amigos dele, um de cabelo loiro e outro de olhos puxados, também sofriam com isso. De certa forma, o governo da época não queria que jovens andassem no eixo. Foi por isso que Francesco, como era chamado desde o nascimento, pediu para que o tratassem por Francisco.
Já com o novo nome, ele voltou a incomodar. No bar da Barra Funda, enquanto esperava a macarronada ficar pronta, ele lembrava com orgulho do que fizera:
— Não me quiseram como Francesco. Pois me tornei Francisco, e nasci para ser campeão — dizia, aos risos, enquanto dava um gole na caipirinha que pedira mais cedo.
Contava, também, como foi a primeira partida de sinuca com o novo nome. Enfrentou um cara com quem se desentendeu algumas vezes. Para evitar qualquer pressão por lá, chegou ao local com uma bandeira do Brasil, como quem sabe ser brasileiro e ostenta a própria fibra, ajudado pelo amigo Oberdan. Vencia o adversário, que, irritado e sem querer enfrentar o ardor da partida, abandonou o local de jogo. Aquilo foi uma arrancada heroica. Francisco foi campeão.
Quase uma década depois, ele viu alguns brasileiros, inclusive amigos dele, ficarem traumatizados. Alguns uruguaios foram ao Rio de Janeiro e, mesmo sem maldade, fizeram os brasileiros sofrer. Francisco sabe o que aconteceu ali, mas, em pleno 26 de agosto, preferiu não contar.
Só falou que, um ano depois daquilo, estava no mesmo Rio de Janeiro. Foi até lá para jogar um campeonato de sinuca, que valeria como um título mundial. Se vencesse ali, no mesmo local onde os brasileiros sofreram, poderia causar um sentimento de redenção. Ele, tão pressionado pelo governo anteriormente, poderia resgatar o orgulho de toda a nação.
Na partida final, enfrentou um italiano. Precisou esquecer, por alguns minutos, da história dos pais dele no país da bota. Era preciso encarar de igual para igual.
Francisco venceu. Na comemoração, deu uma volta na mesa, e foi saudado e aplaudido por todo o Brasil – mesmo por quem não estava lá. Desfilou, inclusive, de carro aberto.
Para todos que ouviam a história, ele contou que aquela foi uma época de ouro. Sentia-se como um rei. Como se tivesse cinco coroas.
Em 1960, conquistou um título nacional, e quis alçar novos voos. Estava em uma fase madura da vida. Se tornou um dos primeiros empreendedores do Brasil. À época, construiu uma academia – daquelas de dar inveja aos outros -, algo que não era comum na cidade.
Com o novo negócio, a vida mudou. A sinuca passou a ser um passatempo, pois a academia poderia render ótimos frutos.
Francisco se dedicou aos estudos. Em julho, chamado por ele de Julinho, passava dias em Santos, aprendendo sobre éticas e direitos morais.
Aquela academia rendeu muitas alegrias a Francisco. Tamanho foi o sucesso dela na cidade, que ele foi chamado para dar palestra aos uruguaios, em 1965, em Minas Gerais. Naquele dia, ele vestiu uma bela camisa amarela. Contou com o auxílio de um amigo argentino, que lhe deu instruções de como se comportar diante daquela turma.
Seu Francisco jura que a palestra foi boa. Tão boa que nunca ousaram repetir.
Alguns aparelhos da então academia foram ficando velhos, e ele precisou criar uma nova. Queria que o sucesso fosse ainda maior.
No entanto, manteve dois aparelhos que ainda funcionavam muito bem. Ainda mais quando estavam próximos um ao outro. Era sucesso garantido para o público.
Como tinha a plena convicção de que a nova academia também lhe renderia alegrias, Francisco passava algumas tardes sentado na guia da calçada, em frente ao bar de um tal de Ademir. Era uma cena comum de se ver, principalmente aos domingos.
No bar da Barra Funda, chegava a gaguejar de saudade.
— Aquela academia era dudu cacete — recordava, com brilho nos olhos.
Com a garantia de sucesso, conquistando cada vez mais adeptos da academia, ele se permitia até ser mais brando. Mas também não era maluco. Para se proteger da violência, contratou um segurança chamado Luís Pereira, que diziam ter a força de um leão. Como todo empreendedor que se preste, contratou um advogado, pois sabia que a inveja dos outros poderia lhe render alguns processos. Era um tal de Jorge Mendonça, que lhe avisou que a lei vinha e existia para ser cumprida.
A segunda academia prosperou, lhe rendeu honras e glórias, mas chegou ao fim.
A década de 80 estava começando, e Francisco, acostumado a ser feliz, passava por momentos de dificuldade. Passou anos sem saber o que fazer. Lá por 1989, começou a tomar muita Coca-Cola, e alguns amigos começaram a dizer que aquilo lhe faria mal.
Foi então que ele substituiu o refrigerante pelo hábito de beber apenas leite. Comprou várias caixas de Parmalat. Essa atitude o revigorou. Ele ganhou cálcio. Passou a ter cada vez mais força.
Resolveu voltar aos velhos tempos. Se tornou, depois alguns anos, novamente um jogador de sinuca. Queria sentir outra vez o gosto de vencer.
Em 1993, fazia 16 anos que ele não sabia o que era ser feliz de verdade. Isso pode acontecer com qualquer um. É de mundo. E vá ir falar isso para ele naquela época. É de um som que ele precisava. O som da comemoração.
Disputou o campeonato como quem disputava o primeiro. Perdeu uma partida, ao som de viola no local, e foi provocado pelo adversário.
Aquilo ficou na cabeça de Francisco. Ele precisou de uma semana para digerir tudo que havia sentido. Acordou focado, comeu um pãozinho, e foi para a disputa final.
Encaçapou três bolas seguidas do adversário. Mas ainda faltava uma. Justamente a bola 8, que renderia o título. Ela estava posicionada de frente para a caçapa. Parecia fácil. Mas foi tensa. Caprichosamente, entrou. Lágrimas de felicidade rolaram nos olhos de Francisco. E hoje, anos depois, ele diz que foi ali que conheceu a paixão.
Depois disso, voltou a ganhar campeonatos nacionais. Encaçapou mais de 100 bolas em uma única competição. Entre ele e os amigos, pura felicidade.
— A alegria era de Jal, minha, do Lu e Zão. E eu dizia ‘Ri, Valdo, mostre sua alegria para todos’ — contou, divertindo o pessoal do bar da Barra Funda.
No final da década de 90, viajou pela América jogando, e deixou seus marcos. O ano de 1999 foi o mais importante da vida dele. Mas mantinha-se humilde. Resolveu aderir um novo visual. Pedia para um velho escudeiro, com quem depois viajou ao Japão, Coreia do Sul, Portugal e Inglaterra, para que o ajudasse a aparar o bigode. Não precisava nem ir à barbearia. Fazia aquilo sentado em um banco no parque, tomando uma gelada Antarctica, em frente à uma loja de amendoim.
Francisco era cada vez mais religioso. Nos países da América, contava com a proteção de um santo. Por vezes, quando as coisas não estavam dando certo, pedia para o divino regressar e o ajudar. Mas Francisco era gente boa demais para não conseguir vencer na vida. E até quando viu o diabo, que ele jurou ser loiro, se deu bem.
Conquistou a todos da América. Sentiu-se querido. Se tornou uma espécie de dono do continente, mas havia quem quisesse tomar o seu lugar. Já em 2000, um mal Celinho, que morava na zona leste da cidade, às margens do rio Tietê, fez de tudo para acabar com os planos de Francisco, que contou novamente com a proteção de um santo para espantar o mau-olhado.
Mas, de algum modo, Francisco se perdeu na caminhada. Passou a ter conflitos internos, a brigar consigo mesmo. E sofreu um grande baque. Foi proibido de jogar sinuca com os grandes adversários da época. Passou a ter de jogar durante um ano em locais menos badalados, mesmo com um taco muito cobiçado pelos ingleses, que tentavam comprar dele.
Francisco não vendeu o taco, pois sabia que um dia voltaria a brilhar com ele. Foi um ano muito complicado. Mas superado. As conversas com os ingleses lhe renderam alguma sabedoria. Aprendeu um pouco da língua deles. Anos depois, explicou que 2003 foi superado com muito love.
Em 2004, voltou a jogar contra os melhores. Rodava o Brasil todo. Em 2008, até atravessou uma ponte para poder conquistar um título.
Cada vez com mais experiência, às vezes dizia coisas que alguns não entendiam muito bem o significado. Um dos ditados se tornou clássico: “Tenha a sorte de um Betinho e a competência de um Beting”.
Voltou a sofrer no mesmo ano que havia sido feliz. Passou mais um ano impedido de jogar contra os bons, que diziam que Francisco estava morto para aquilo. Novamente deu a volta por cima.
— Lute sempre. Nunca desista. Vocês devem estar prontos prass se defenderem — aconselhou.
Ele, depois de tanto sofrer, foi novamente respeitado no Brasil – em dois anos seguidos, conquistou dois títulos de âmbito nacional. Tornou-se o maior vencedor do país.
Alguns adversários insistiam em dizer que ele iria decair. Mas Francisco, dois anos depois, fez um deca vir. Comprou um pitbull baixola para se proteger e atacar quando necessário. Voltou a cuidar bem do bigode. Disse que só com muita paz é que se scarpa da guerra. Cultivou um pé de laranja lima, e precisou proteger de um menino meio maluco que foi morar no bairro. Por fim, anotou seus marcos em uma rocha – para que ninguém duvidasse de que ele era capaz de abrir um mar, como fez Moisés.
O dia já escurecia no bar da Barra Funda, na rua Palestra Itália. Era hora de Seu Francisco voltar para casa. Ele disse aos amigos que, quem quisesse ouvir o resto, que o acompanhasse de perto nos próximos dias, meses e anos, pois seguirá contando as histórias. Se levantou, pagou a conta, e voltou para casa.
No bar, houve quem questionasse e não acreditasse no que o velho acabara de contar. Para estes, é impossível explicar tudo.
Também houve quem ouviu e se encantou. Para estes, é desnecessário que Francisco conte tudo de novo.
O que Seu Francisco representa, na verdade, é um estado de espírito. Hoje, mais de 16 milhões torcem diretamente para o sucesso do que ele representa. Mas sete bilhões devem respeitá-lo.