A trajetória de Ary Borges ajuda a entender como se constitui uma carreira no futebol de mulheres do Brasil. Desde a saída do futebol pernambucano, ainda longe de ser um centro profissionalizado, até a ida para os Estados Unidos, que acontece agora com sua transferência, entender Ary é entender dilemas comuns às atletas – ainda que Ary seja tudo, menos uma atleta comum.
Quando a meia deixou o São Paulo, onde era muito identificada inclusive através do pai, sãopaulino fanático declarado, para defender o Palmeiras, quem vê o futebol feminino de longe conseguiu entender as dinâmicas reais nesta modalidade, tão diferentes das vistas com os homens. Temas como oportunidade salarial e estrutural foram debatidos sem o veneno das rivalidades. Agora, quando Ary anuncia mais um salto na carreira, fica fácil notar que o futebol brasileiro ainda não comporta jogadoras que se desenvolvem tanto quanto ela. Todo o público, seja
torcedor passional ou analista sensato, leu a transferência como passo natural.
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O que talvez seja distinto no caso de Ary Borges é o quanto de história há para se contar em tão pouco tempo, e o quanto isso nos ajuda a memorizar e catalogar as jornadas, heróicas ou fracassadas, das mulheres de nosso futebol. O Palmeiras de 2022, que, no fim, é o Palmeiras da Ary, chegou a ser o Palmeiras de um vexame inominável, quando, na semifinal nacional, o clube lidou com um afastamento (Agustina), uma deserção (Thais) e uma derrota humilhante (4×0 para o Corinthians). E, acabada a temporada, é possível classificar o projeto feminino do clube como antes e depois da primavera de 2022.
Nocauteado em casa pelo Corinthians, o clube tinha uma chance de restaurar sua imagem – e Ary, já em negociação com o exterior há tempos, sabia que esta chance determinaria a sua última imagem com a camisa verde. E esta chance era na Libertadores. Além dela, havia o Paulista, cujo nível técnico se assemelha ao da competição continental, mas o apelo, não. O Palmeiras, até os 40 do 2º tempo das quartas de final da Libertadores, parecia, se não nocauteado, ainda grogue. Aquela eliminação para o frágil Santiago Morning mudaria o tipo de despedida que ela receberia. A reação, no último respiro, veio.
Sem esta reação, O Palmeiras da Ary seria uma história amarga, marcada por seguidas derrotas em jogos decisivos e aparente dissolvição anímica, um time perdido, desconectado, desorientado, cujas mudanças se dariam compulsoriamente, não com sorrisos resignados. Quando Ferroviária e Corinthians foram eliminados da Libertadores, dando ao Palmeiras o peso de um favoritismo ambíguo, levantar ou não a taça se tornou ainda mais definidor da passagem da camisa 8, assim como de Bia, a 10, e outras lideranças. As lágrimas aliviadas de Ary após Palmeiras 4×1 Boca Juniors respondem com qual tinta a história foi escrita.
Ary vai embora do Palmeiras como uma meia em desenvolvimento brutal. Aparece mais na área, faz mais gols, dá mais alternativas aberta pelos lados, tem mais participação com e sem a bola. Fez gols nas duas finais, mas sua participação nas partidas vai muito além disso. A caminho da titularidade na Copa do Mundo de 2023, Ary, ao se despedir, deixa ao Palmeiras o lembrete de seu lugar no mundo do futebol de mulheres. Já não será possível encontrar uma substituta com a mesma facilidade encontrada para tirá-la do rival tricolor. Será preciso mais do que apenas pensar o futebol à base do lema “contrate a melhor”. Para fins históricos, começa agora uma nova Era. O tempo pós-Ary.
Ary é um tipo de jogadora à flor da pele, que se emociona e enfurece com a mesma facilidade. Entre os dois sentimentos, um futebol sofisticado em passos de moleca, um jeito de jogar que transmite alegria. O Palmeiras de 2022, marcado pela história como campeão, não deixa, só por isso, de ter uma temporada controversa e problemática. Ary, pela quarta vez na carreira, dará um salto de estrutura, conhecerá um local mais profissional que o anterior, mas, agora, dela também se espera a maturidade que três anos atrás era problema de outras, não dela. E o Palmeiras terá seus velhos problemas para enfrentar, mas agora sem uma atleta decisiva para resolver em campo o que não se conserta fora dele.
O futebol brasileiro assistirá curioso esta nova etapa do futebol de Ary Borges, cujo desenvolvimento muito interessa inclusive à Seleção. A reação palmeirense de 2022, vinda a partir de um milagroso chute de Katrine quando tudo parecia perdido, não deixa claro se foi mais fruto do talento ou do coração de um elenco magoado. Ary Borges é a protagonista deste Palmeiras, e as dores e delícias enfrentadas pelo clube ao longo do ano contam um pouco de quem são suas autoras. Ary é talento e é coração. Há mais para ser. Nos Estados Unidos, em ano de Copa, valerá a pena acompanhá-la.
Ary dificilmente encontrará, no Racing Louisville ou noutro lugar, um ambiente tão instável e complexo quanto o vivido em 2022 em Vinhedo/São Paulo. O Palmeiras, por vias tortas e com jornadas agônicas, ajudou a amadurecer Ary, que, por sua vez, ajudou o projeto Palmeiras a ser, enfim, vencedor. Deve ter valido a pena para as duas partes, mas ambas ainda precisam e podem evoluir.
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