ESCREVE LEANDRO IAMIN
"Foi. Nunca será de novo. Lembre". Esta frase, convicta sentença à favor do olhar para a frente e decidida a deixar as memórias no nobre lugar destinado a elas, conclui um dos livros de minha vida, A Invenção da Solidão, do Paul Auster. Foi uma leitura marcante, e será de novo, já que escolhi para este verão revisitar a leitura de um livro de memórias de um filho que precisa lidar com as coisas e suas consequências, objetos e pendências de um pai que acaba de morrer. Esta frase, "foi, nunca será de novo, lembre", está, inclusive, tatuada em minha pele, pelo tanto que acredito que as delícias vividas devem ser delícias contadas, lembradas, mas não revividas.
Às vezes a gente nem tem a chance de reviver, e os campeonatos de futebol, embora tenham edições anuais, não se repetem à perfeição. O Palmeiras pode voltar a Tóquio, mas será sem o Evair. Um dia Ademir da Guia vai embora. A cerveja que eu não bebi nestas décadas de proibição nos estádios eu não beberei mais, e as bandeiras que não foram feitas já não tremularam, mesmo que amanhã sejam feitas e usadas. O estádio no qual me criei já foi, não será de novo, e me resta lembrar. Como lembro de uma noite misteriosa, na qual minha avó, senhora pacata, estava agitada demais para um acontecimento do qual tínhamos pouca informação. Só sabíamos, em casa, que o "Luxemburgo pode ser que esteja lá".
Até hoje a história tem pontos cegos. A certeza é que lá pelas dez da noite a vovó chegou em casa e gritou "ele é liiiindo!" batendo palma numa alegria de criança. estávamos no meio dos anos 90, a família, de maioria palmeirense, amava Luxemburgo por seus atributos como técnico e macumbeiro, mas era notório, a despeito de meu avô que tratava o tema com a correta distância, que vó Lucy desenvolveu um interesse pelo futebol que não era esportivo. Uma paixão platônica após os 60 anos existia ali, e ela deu um jeito de conhecer, em um jantar, o então técnico do Palmeiras em sua segunda passagem pelo clube.
Um ano depois, minha vó morreu. Como no livro A Invenção da Solidão, coube aos filhos de quem se foi a tarefa de mexer nas coisas íntimas e banais de quem não voltaria para desfazer o guarda-roupa. Em dado dia, o riso foi ganhando os cômodos da casa. Não teve quem não tenha se admirado com as duas bolsas cheias de recortes de jornal com fotos do Luxa. O vô comprava o jornal, lia o dito cujo (o neto mexia às vezes pra formar caráter), a vó pegava pra jogar fora mas dava um jeito, escondido, de recortar as aparições do Luxa para poupá-lo do xixi do cachorro ou do lixo. Era uma antologia acumulada de anos de fotos de Luxemburgo, curadoria sem critério de época ou estilo. Vovó teve, nos seus últimos anos de vida, paixão profunda pelo homem que nos tirou da fila de títulos.
De modo que é este o lugar que Luxa ocupa em minha memória. Não se trata, antes de qualquer coisa, de nada pessoal. Um exercício no baú da memória serve para que o personagem se torne palatável. As coisas, no entanto, acabam – e passam a viverem em nossa memória. Minha vó acabou. O Skank, única banda futeboleira desta país, que enfiou até nomes de torcidas organizadas em músicas dos anos 90, vi dia desses, também acabou. Eu tenho um livro na minha frente para ler pela segunda vez cujo caráter central da narrativa entra em dramático conflito com o que meu time de futebol acaba de fazer. O Palmeiras apostou no "Foi, e será de novo".
Que vovó nos abençoe.
ESCREVEU LEANDRO IAMIN