Era um Palmeiras e Santos com níveis palmeirenses de tensão. Cheguei cedo ao Allianz que, ainda frio pelo horário e pelas correntes, transpirava expectativa. O time de Luís Felipe Scolari, o mesmo comandante daquele elenco cuja história se cruzaria com a minha, naquele dia, jogava para se isolar na liderança do campeonato nacional e afastar as ameaças em branco, preto e vermelho. Convidado por amigos, fui ao camarote assistir ao prélio. De cara, antes que as luzes me chamassem a atenção, vi alguém, nos fundos do espaço, com uma caderneta na mão e uma concentração impressionante.
Receoso, conquistei jardas até perceber que era César Sampaio. Uma obviedade que tardei a assimilar. Quem mais estaria tão fascinado pelo presente Palestra Itália nos concretos modernos? Hesitei, pensei na melhor frase, imaginei abordagens, revivi minhas memórias em um minutos e cinco passos. Resolvi tomar uma água antes de ir além. Abria a garrafa quando: ‘aceita?’ Virei, surpreso, e o homem que ergueu a América me oferecia um amendoim. Fosse Tarantino, essa solução cômica não seria tão brilhante. Ainda mais sendo um AMENDOIM.
Tremi, balbuciei e disse: ‘Si, si, siM, por favor.’ Tomei das mãos do ídolo e sentei ao lado de quem me trouxe a maior alegria daquilo que mais amo na vida. Não soube muito bem como reagir. Ele perguntou, sentindo a intimidação: ‘de qual veículo você é?’ Comentei brevemente desse site que vocês conhecem e, incentivado pela atenção do craque, prossegui. Quando notei, Palmeiras e Santos se enfileiravam para o hino nacional do Palmeiras. O tempo havia se teletransportado. Era hora de jogarmos.
Com dois a zero no placar, comemoramos a vitória que se avizinhava com facilidade. Resolvi falar da América. Ele mudou de feição, ficou sério, quase nervoso. ‘Você se lembra?’, perguntou. Com medo de pisar em falso, admiti: ‘não, tinha 5 anos. O que sei, vi pela televisão’. Ele riu e me surpeendeu com a seguinte fala: ‘posso contar como foi, mas de dentro do campo!’. Não ganhei na Mega-Sena, mas desde quando a loteria paga paixão?
‘Foi um jogo duro, pegado, forte, mas a gente sabia que ia vencer. Não tinha como olhar para essa torcida (apontando em gestos circulares e olhando para as arquibancadas do Allianz) no Palestra e admitir perder. Um jogo pode ter qualquer desfecho, mas a gente nunca pensou qualquer coisa que não fosse o título. Eles confiavam demais em nós e isso é a melhor recompensa que existe. Você tinha 5 anos e até hoje sabe quem eu sou. Foi por isso que ganhamos’.
Engoli seco, molhado, senti no rosto a emoção materializada. Tentando disfarçar, tomei um gole daquela água, me recompus. Ele olhava pro campo e se irritava com o empate que o Santos remontava no clássico. Esmurrou a mesa que abrigava suas anotações. Me surpreendi com a reação do sempre calmo capitão (mas achei tão verde quanto somos). Perguntei o que ele via de errado. ‘O Felipe precisa mexer. O Victor está sofrendo demais pela esquerda, estão dobrando contra ele. Se bem conheço ele, não vai tirar o menino. Sempre foi assim’. A teimosia, ou convicção, de Scolari, campeão da América ou do Brasil, nunca mudou, pelo que notei naquele instante.
Minutos depois, aquele Victor, o que sofria, fez o gol de falta que assegurou a vitória (e o deca!). O camarote veio abaixo e pela primeira vez na vida, abracei um ídolo para festejar um gol do nosso time. Meu, seus e dele. Acertivo, apontou: ‘Foi por isso que ganhamos naquele ano. Ele nunca desistiu dos jogadores, a torcida nunca desistiu do time, o time nunca desistia de ganhar. Você não viu, mas hoje se parece com aquela campanha’.
Anotei no celular para não esquecer da fala impactante. Quando olhei de lado, ele já saía, acenando com a mão e levando sua caderneta. Suas histórias, suas aulas, seu brilho. Letárgico, vi o final daquela vitória imensa, mas entendi muito sobre o que foi o Palmeiras de 1999, o Palmeiras de Luís Felipe Scolari, o Palmeiras que conquistou a Libertadores da América.
O Palmeiras de Sampaio.