Quantas vidas valem um gol?

Cá estamos, mais de oito meses depois, fazendo a mesma pergunta. Dessa vez, não são mais 80, mas sim 300 mil vítimas fatais

Em julho de 2020, o portal Jota publicou um artigo de opinião escrito por Raimundo da Costa Santos Neto com o seguinte título: “Quantas mortes valem um gol?”. O texto fazia referência à pressão de alguns clubes, especialmente do Rio de Janeiro, para adiantar a volta do futebol brasileiro que estava paralisado desde março. Absurda por natureza, a requisição coincidiu com um dos primeiros grandes picos da pandemia no país. Ainda assim, a bola rola desde então. 

Cá estamos, mais de oito meses depois, fazendo a mesma pergunta. Dessa vez, não são mais 80, mas sim 300 mil vítimas fatais dessa doença que não perdoa nem aqueles com histórico de atleta. Ou até mesmo atletas em atividade. Além do mais, antes fossem apenas jogadores a conviver no meio esportivo. Afinal, os inúmeros funcionários invisíveis, que trabalham para sustentar essa gigante estrutura que é o futebol, também entram na conta. Uma equação que, independentemente do valor, tem resultado negativo. 

Apesar da clarividência dos fatos, há quem defenda que segue sendo um ambiente seguro. Fechando os olhos para as mortes de Paulo Magro, 59 anos, presidente da Chapecoense; Biagio Peluso,71 anos, vice-presidente do Cruzeiro; Marcelo Veiga, 56 anos, técnico do São Bernardo; Renê Weber, 59 anos, auxiliar técnico do Botafogo, e tantos outros que partiram. Sem contar os que ficaram, mas que passaram por situações de risco ou tiveram sua capacidade física parcialmente comprometida por sequelas. 

Além dos casos individuais, os surtos de Covid nos elencos e comissões técnicas dos clubes revelaram o que já era previsto… os protocolos são falhos. E muito falhos! Tão ineficientes que permitiram com que o teste positivo de um jogador fosse descoberto apenas no intervalo de uma partida, após o atleta ter circulado 45 minutos contaminado em campo. Fora os prejuízos às próprias equipes que foram obrigadas a jogar até sem jogadores no banco de reservas. 

Porém, mais desfalcado que o plantel dos times, somente o sistema de saúde brasileiro após vários colapsos regionais. Com superlotação e falta de insumos, equipamentos e materiais básicos, cada paciente a menos pode significar mais de uma vida salva. Isso porque o agravamento dos casos vem requerendo cada vez mais leitos, em uma batalha desproporcional contra o tempo de recuperação dos doentes. Por isso, sobretudo agora, não há espaço para mais atividades não essenciais com potencial de contaminação. 

Essa insistência infantil e gananciosa das federações carrega um tom quase criminoso de atentado à vida. E isso tudo só não é inacreditável de presenciar, porque está de acordo com a história dessas entidades. Dinheiro acima de tudo e interesses acima de todos. Com esse malabarismo para enfiar partidas onde quer seja, mediante desculpas desonestas e protocolos frágeis, o futebol perde seu sentido. Assim, desafiariam até Maradona, ao fazerem de tudo para manchar a pelota. 

O resultado até agora é a tomada de decisões que apenas deixam o contexto mais grave. Por exemplo, com o aumento do fluxo de pessoas, dada a necessidade de deslocamentos interestaduais, criam-se novos focos epidêmicos. Entretanto, que fique claro, culpados não são aqueles que proíbem a prática em seus estados, mas os que mesmo com as restrições vão atrás de alternativas ainda piores. Um festival de hipocrisia e contradições, que desampara em um grau ainda maior os clubes, os jogadores e todos os outros cidadãos.

Ao final, pouco importa se os jogos acontecerão ou não. Somente a obstinação por ir contra todas as recomendações científicas já é uma atitude nefasta. Perseverar nesse caminho que prejudica a luta do país no momento mais grave da doença é tão surreal quanto desumano. A conivência dos demais agentes desse jogo também tem papel fundamental. Não só os que apoiam, mas também os que, diante disso, se calam. 

Basta de redes balançando enquanto milhares de covas são cavadas por dia. Hoje foram mais 3 mil. Vai ter jogo. E aqueles que ordenaram ou permitiram a continuação desse circo, que estejam cientes da sua participação nesse processo. Não pode ser assim. É preciso parar a bola novamente. O único jeito de virar esse jogo é, nesse momento, deixando de jogar os demais. O Brasil clama, chega de gols!