Siamo nós

Nós que, acima de tudo e no meio de todos, somos verdes de Palmeiras

Metade do século XIX. Lei de Terras para concentrar, valorizar e cercar as propriedades nas mãos e bolsos dos barões do café. Leis abolicionistas para inglês ver. Início do fim da escravatura legalizada no país. 

Da labuta compensada com dinheiro nas lavouras do Centro-Sul, surge a primeira grande leva de imigrantes italianos no Brasil. População negra sucateada e largada à própria fé. Fé essa que já havia sido usurpada e criminalizada há quase quatro séculos. 

Para branquear a nação, trabalhadores do Velho Continente vinham substituir os ex-escravizados a pedido do Estado. Condições precárias e baixas remunerações davam continuidade a uma mão de obra refém dos interesses da elite rural. 

Virada do século. Graças ao desenvolvimento da economia exportadora, as primeiras atividades fabris de maior porte afloravam em território nacional. Indústrias de base mais simples, que serviam de atividade complementar à agropecuária, recrutavam braçais. Da Itália, vinham mais operários que fugiam das crises. 

1914. Para os historiadores e conhecedores da história, iniciava-se a Primeira Grande Guerra. Para os palestrinos – futuros palmeirenses – e conhecedores do Palestra, fundava-se sua alma.

Com propósito de abrigar a fraternidade italiana, a nova equipe não discriminou classes sociais. Componentes de todos os extratos acharam na casa alviverde um lugar para chamar de seu. Para chamar de nosso. 

Concomitantemente, a terra natal desses imigrantes aliava-se à Tríplice Aliança e opunha-se à sua terra de lavoro. Itália protagonista de um dos lados, Brasil apoiador discreto do outro. 

Os trabalhadores e atletas, que nada tinham a ver com o conflito, iniciavam aí uma história de luta por sua identidade miscigenada desde o princípio. Assim, em poucos anos, fortaleceram seu grupo e elevaram o patamar do clube. Vitórias e conquistas atraíram milhares de adeptos de todas as partes. 

1942. Para os historiadores e conhecedores da história, chegava-se ao auge da Segunda Grande Guerra. Para os ex-palestrinos – agora palmeirenses – e conhecedores do Palmeiras, arrancava-se heroicamente. 

Novamente com seus Estados em lados opostos, os ítalo-brasileiros foram alvo de xenofobia e perseguição. O Palestra Itália, enraizado no Brasil, mas fruto da massa italiana, não ficou de fora. Condenado à extinção, fizeram de tudo para apagar seu nome. 

A solução foi mudar. Abraçar as brasilidades que formavam o time para sobreviver. Então, que o Palestra fosse Palmeiras, mas que fosse e não deixasse de ser de todos os palestrinos e palmeirenses. Brasileiros e italianos. Brancos e negros. Verdes! 

A cor daquela esperança que junto ao amor à terra desce. A cor que traduz-se igual do italiano ao português. Do verde que compõe a um terço da bandeira italiana e a maior parte da bandeira brasileira. Verdes distintos, mas verdes de verdade. 

Essa é a cor que foi escolhida e nos escolheu. Assim como a da pele diversa de cada torcedor, assim como a do sangue vermelho de cada fanático, assim como a dos ossos brancos daqueles braços que vibram por ti. Por nós. 

Nós que somos homens e mulheres. Nós que somos crianças, jovens, adultos e idosos. Nós que somos negros, pardos, brancos, mulatos, mestiços, cafuzos, caboclos e índios de todas as tribos. Nós que somos brasileiros, estrangeiros e até apátridas. Nós que temos ideologias de esquerda, de direita e de centro. Mas nós que, acima de tudo e no meio de todos, somos verdes de Palmeiras. 

Portanto, aqueles que reivindicam a segregação de um clube que nasceu da mistura são os únicos que não tem espaço aqui. Pois, entre todos, os intolerantes são os únicos que não podemos tolerar.

Se começamos com um pé na Itália, hoje temos um pé em cada continente. E um pé em cada Brasil. Tal qual nas três gerações de palmeirenses no povoado quilombola na cidade de Alcântara. Ou na aldeia Utawana, com Iépe Mehinako que viajou do Mato Grosso a São Paulo para ter contato com seu time de coração. E até na escolha do Verdão como clube mais popular entre a comunidade japonesa paulistana. Time de todos os credos. Nossa fé, religião.

Seja na imensidão da Floresta Amazônica; seja nas palmeiras da Mata dos Cocais; seja nas folhas das árvores retorcidas do Cerrado; seja no que resta de Mata Atlântica; seja nas gramíneas dos Pampas. Presente com quem o veste e o leva no peito em todos os cantos do país. Onde quer que seja verde, será. 

Porque a raiz da nossa árvore é de todas as cores e, principalmente, de todos os verdes.

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