A estiva do Tio Mi estava sempre com o Palmeiras

José Laudemir trabalhava na sacaria do Porto de Santos. Estivador. Carregando peso desde os 18 anos, saco de café na estopa, 20 kg na cabeça e nos braços levando pela vida os filhos Diego e Denis. Palmeirenses como o pai.

A irmã Maria de Fátima é casada com Marcos. Torcedor do Santos. Mas não a ponto de querer o filho Maicon alvinegro.

Na escola, com sete anos, fizeram fotos dos alunos vestindo as camisas dos seus clubes. Maicon escolheu entre tantas a do Palmeiras da Parmalat que estava sobre a mesa. E com boné, como se fosse capa da PLACAR. Os pais colocaram o retrato na sala da casa de Santos, onde o tio vinha almoçar para economizar ao sair da estiva. Quando viu a foto, o Tio Mi fez questão de pagar a irmã pelo retrato. Aquilo ali não tinha preço.

Mas custava muito sair de Santos para ir ver o Palmeiras em São Paulo. Não tinha como. Só dava mesmo para ir na pizzaria perto de casa ver o jogo pela TV. Essa era a arquibancada do Maicon e do Tio Mi: a pizzaria Nossa Senhora. Ali, Maicon, os primos e o tio viram o Palmeiras sair da fila contra o Corinthians, em 12 de junho de 1993. Maicon tinha a idade do retrato.

Vibraram com as Vias Lácteas da Parmalat ganhando quase tudo. Até os pênaltis contra o Deportivo Cali, em 1999, lavarem a alma e Maicon dar o sangue pelo campeão da América.

Ele foi erguido pelo tio no pênalti final de Zapata na celebração da conquista. José Laudemir que levou anos levantando café de um lado a outro do cais ergueu um dos grandes prêmios da vida e bateu com o nariz do Maicon na parede. Não quebrou, mas sangrou bastante. Hoje ele ri. Então chorou de dor tanto quanto de emoção.

Faz parte da vida de levar de um lado a outro o que se ganha. É fardo, é pesado, mas é assim que se vence.

José Laudemir chegava seis da manhã todos os dias no Porto de Santos. Tio Mi ia pra parede onde começavam os trabalhos enquanto o sobrinho ainda dormia para a escola à tarde. Uma hora o tio tinha de almoço. Alguns desses minutos ele passava com o sobrinho mais falando de Palmeiras que da vida, vendo na casa do Maicon os programas de esporte na TV. O que é muitas vezes a mesma coisa. Quando não melhor. Mesmo quando na pior o nosso amor nos deixou nas quedas. Mas essas sempre têm volta. Maicon e os primos estavam no Palestra quando o Palmeiras goleou o Botafogo e ganhou a Série B em 2003 para voltar ao lugar onde não ficaria dez anos depois.

É maré. Vai e volta. O bom é que ainda é Palmeiras. A gente vai e volta com ele.

Quando o Tio Mi foi morar em São Vicente, ele dava sempre um jeito de pegar o sobrinho para ver com ele e os primos o Palmeiras na pizzaria. Quando não era churrascaria. Padaria. Bar. Onde fosse quando fosse Palmeiras na TV.

Maicon não só escolheu o Palmeiras. Ele foi acolhido pelo clube e pelo tio. E pôde uma noite retribuir tantas visitas ao “Palestra da família”. Final da Copa do Brasil de 2015. Palmeiras x Santos – time da cidade deles, mas não do coração.

Maicon e o primo Denis saíram 17h30 do Atacadão onde trabalhavam em Santos. Eles e amigos tinham passado desde segunda de madrugada tentando comprar ingresso para a decisão no Allianz Parque. Não conseguiram. Queriam ver a final com a torcida no Bar da Grade – só que estava fechado. A saída seria o Bar da Mancha, lá na Praia Grande. Mas não era perto. Decidiram então assistir ao jogo de volta na casa do pai do Denis, o Tio Mi, o maior responsável pela paixão quase irresponsável pelo Palmeiras.

Qualquer coisa o Maicon dormia por lá. Ou nem dormiria se o Palmeiras vencesse o clássico por dois ou mais gols de diferença. Ou se vencesse por 2 a 1, com gols de Dudu e, então, nos pênaltis, o Fernando Prass fizesse o gol do tri. O do título. Imagina se acontece tudo isso?

Quando chegaram na casa do Tio Mi, ele estava deitado no sofá cuidando das hérnias da estiva. Só os olhos visíveis. Todo o corpo escondido pelo cobertor inusitado no dezembro santista. Não era frio. Mas ele tremia só de ver o Nivaldo Prieto na cabine do Fox Sports no Allianz Parque. Não era nem seis da tarde. Faltavam quatro horas para a decisão. Mas ela já tinha começado pro Tio Mi muito antes. Só os olhos de fora da coberta, ele perguntou ao filho e sobrinho onde eles iriam ver o jogo que ele já não aguentava só de ver o pré-jogo na televisão.

⁃ Vamos ver aqui, pai, com você.

⁃ Não tem outro lugar?

⁃ Tem o Bar da Mancha, lá na Praia Grande.

⁃ Vamos! Eu quero ver esse jogo no meio da massa! Não consigo ficar aqui em casa parado!

E eles foram para o meio da torcida no Palestra deles e de muitos Palmeiras. Nosso lar não é só o Allianz Parque, o Porcoembu que é nosso por usocampeão, o Morumbi de festas em 1974 e 1993, a Vila onde ganhamos tantas, o Maracanã onde conquistamos todos os rios. A nossa casa é onde podemos estar com o Palmeiras ao lado como José Laudemir levou os filhos e o sobrinho pelas mãos de tantos pegadas e paradas.

O vecchio Palestra também é cada bar que vira lar. Como fez o Tio Mi já na madrugada da decisão, em 2 de dezembro de 2015. Ele não conseguia dormir. Já estava aposentado pelo que carregou na vida. Acordou 4 da manhã e foi pro porto de Santos. Não para descarregar coisas. Mas para tirar o peso dos nervos. Chegou nos bares do cais já abertos para tantas histórias para encontrar os amigos de estiva e tentar esquecer a ansiedade da decisão. Apreciou com moderação e papo a vigília da final. Desde 5 da manhã daquela quarta-feira ele jogou conversa dentro. Não para esquecer a vida. Mas para lembrar que a nossa é você, Palmeiras.

No Bar da Mancha o Tio Mi pôde ver com aqueles olhos que só eles não estavam cobertos no sofá de casa como não é mesmo preciso ter um lar pra chamar de nosso. Só é preciso ter uma família unida em torno dele. Um espírito de comunhão que faz de qualquer lugar o nosso.

Agora a gente precisa um dia trazer o Tio Mi pra conhecer o Allianz Parque. Ele só precisa prometer deixar o cobertor lá em Santos.