‘A nossa causa é a causa da glória do Palestra’: uma viagem pelo palmeirismo da década de 1940

“A história será gentil comigo, pois pretendo escrevê-la”. Essa é uma das minhas frases preferidas, embora nunca tenha sido proferida exatamente assim. É, na verdade, uma paráfrase de uma discussão que o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill teve no Parlamento. Mas é também uma lembrança constante de que a história que aprendemos tem sempre um ponto de vista – o dos vencedores.

Antes de mais nada, eu preciso deixar claro uma coisa: não sou historiador, não sou pesquisador. Esse texto é puramente pessoal, sem grandes pretensões acadêmicas. É apenas uma história (a minha), e que eu queria registrar.

Fato é que há algumas madrugadas, deitado na minha cama e antes de sonhos inquietantes, dei por mim no site da Biblioteca Nacional pesquisando sobre o Palmeiras em jornais antigos. 

Veja bem: sempre me fascinou a perspectiva de compreender o que é, afinal, o time que nós torcemos. Sempre quis decifrar esse enigma do que diferencia o Palmeiras dos outros clubes. Mais que isso, sempre tive a obsessão de resumir isso em palavras.

A busca pelos periódicos me levou a um em particular: Il Moscone. E é aí que começou minha jornada. Trata-se de um semanário que começou a circular em São Paulo pelos idos de 1920 e que continuou sendo impresso até 1960 e poucos. Perdoem a imprecisão mas, como disse, não sou historiador ou pesquisador e, francamente, estou com preguiça de pesquisar para saber os anos corretamente. Se quiser, o Google está à sua disposição. 

O diretor do Moscone, que depois se tornaria Moscardo – o Palestra não foi o único a ter que mudar de nome por sua ligação com a Itália -, era Vicente Ragognetti. Trata-se de figura polêmica sobre o qual gostaria de escrever mais um dia desses.

Em um período específico, “Il Moscone” tinha uma seção chamada Torcidas, sobre futebol. E, ora bolas, como se tratava de um periódico para a colônia italiana, obviamente era basicamente uma seção sobre o Palestra.

Não sei quem o escrevia: se o próprio Vicente, se outro palestrino, se o João Gaveta. Fato é que o responsável entendia o Palestra como ninguém. Semana a semana, eu me espantava com uma conclusão que antes me parecia absurda: nada mudou.

Sei que é meio Elis Regina, “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Mas, no duro: nada mudou.

Aquele não eram os relatos de jornais antigos com os quais eu estava acostumado, com toda a pompa sobre os “matches” e os “backs”. Não. Era uma leitura muito acessível. Qualquer trecho, se atualizado, poderia muito bem estar rolando por aí nas redes sociais sobre o Palmeiras de hoje.

Veja esse aqui, de maio de 1940, em que o cronista reclama do técnico que manda um time misto para campo:

“Não gostamos do quadro palestrino. Os tais da Comissão Esportiva deram uma boa mancada. Pra que mandar aquele quadro misturado e bichado? Ou bem completo ou bem de reserva somente.

Imagem

E o que dizer dos “sócios Avanti” da época que reclamavam que, além da mensalidade, ainda precisavam desembolsar determinado valor pelo ingresso?

“- Não pode ser – estrila o Nicola, o dono do salão de barbeiro, que é sócio e alardeia sempre os seus sagrados direitos de sócio: – Então a gente paga dez mil réis por mês e tem que morrer com mais dez para assistir a um jogo no nosso campo? Isto é um absurdo! Eu vou pedir demissão…”

Imagem

Não existia Twitter, então os palestrinos invadiam a sede do clube para reclamar de tudo: “os palestrinos, em altos orados, invadiram a sede do clube e puseram-se a gritar contra tudo e contra todos, sem dizer o que, de fato, desejavam. Agora eram contra a diretoria, ora contra o juiz, ora contra os jogadores, ora contra o futebol! Uma balbúrdia dos diabos”.

Imagem

E como sabemos mais do que ninguém: apesar das cornetas, o Palmeiras levaria o título naquele ano de 1940. O texto sobre a glória do Palestra é uma obra-prima que poderia ter sido escrita ainda ontem. “O Palestra tem tudo contra. Tudo e todos”. 

Tenho para mim que a paranoia é um dos traços marcantes do nosso clube. Já na época o texto fala das confusões políticas do clube. 

Imagem

Se hoje temos no Twitter aqueles que reclamam dos torcedores de contratação, na época a mesma discussão também já existia: “não há sócio ou torcedor palestrino que não queira dar palpites, que não tenha descoberto, em Arraial dos Souzas ou em São Francisco do Pipoqueiro, um bom goleiro, um centro médio do outro mundo que põe no chinelo o Brandão”.

Imagem

Avançando alguns anos, para 1951, a seção “Torcedores” acaba sendo substituída por outra, mais genérica, mas ainda com uma seção específica para os agora palmeiristas: trata-se da coluna “O Palmeiras tem sempre razão”, assinada por ninguém mais ninguém menos que João Gaveta, talvez o torcedor ilustre mais famoso da história do Palmeiras.

E o Gaveta realmente entendia como poucos do Palmeiras e sua capacidade fora de série de se complicar contra os pequenos e ter vitórias heroicas contra certos esquadrões.

Veja só você, já depois do Palmeiras vencer não um, não dois, não três, mas cinco títulos, as chamadas cinco coroas, Gaveta escreve sobre o início irregular do time: “Você dirá que a coisa é bastante difícil. Mas todas as coisas difíceis o Palmeiras é capaz de fazer. O que o Palmeiras não consegue fazer são precisamente as coisas corriqueiras: dar num Jabaquara, por exemplo.”

Semanas depois, após uma vitória marcante, resume o nosso clube de novo:

“Esta gente ainda não percebeu que o Palmeiras só sabe jogar contra os campeões, os tais de invictos, os tais de insuperáveis, os melhores do mundo… Façam um combinado dos melhores jogadores do mundo, e mandem-o jogar contra o Palmeiras. É vitória na certa do alvi-verde!”

Imagem

A viagem pelo palmeirismo de 1950-51 foi particularmente interessante porque se trata de um momento muito parecido com o qual estamos vivendo agora. Tenho lido e discutido muito com aqueles que não acham correto reclamar do elenco ou falar que certos jogadores são ruins ou bons.

Pois bem: tanto no Palestra quanto no Palmeiras, a corneta sempre soou – mesmo após as temporadas das mais vencedoras. Já existiam os que cornetavam e os que reclamavam da corneta, os que cobravam o elenco e os que pediam união.

Talvez tenha sido o futebol que não tenha mudado, talvez ser palmeirense é uma coisa que nos ligue a esses grandes palestrinos de quase 80 anos atrás – que as parmeradas sejam mais velhas do que imaginamos, que alguma coisa naquela reunião de pessoas em 1914 tenha formado uma faísca que acende de um jeito diferente todo grande jogo, seja em 42, em 51 ou em 2015.

Não sei. Vou continuar pesquisando.