Gustavo Nogy: ‘Abel no país das maravilhas’
'Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal...' – Fernando Pessoa
Por Gustavo Nogy
Abel Ferreira descobriu o Brasil – e descobriu que no Brasil certos valores estão de ponta-cabeça. Aqui se premia o errado e se pune o certo. Aqui se aplaude o abuso e se apupa o uso. Quantos, por exemplo, não exaltaram a trajetória do Santos na Libertadores por causa – e não apesar – da calamitosa gestão? Impeachment, salários atrasados, dívidas crescentes, punições da Fifa, coitadinhos, coitadinhos, coitadinhos, eles bem que mereciam.
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O treinador palmeirense tem gritado o que outros sussurravam: o calendário brasileiro é um atentado ao futebol brasileiro. Com partidas disputadas a cada 72 horas ou menos, e inúteis compromissos da Seleção entremeados, os times não treinam, não descansam, não evoluem. Perdem qualidade técnica, padrão tático, intensidade física. Perdem jogadores contundidos. Perdem torcedores pagantes. Soluções? Contratar e dispensar precocemente. Torcer para dar certo. Fazer uma fezinha. Aumentar o bicho.
Nesta temporada, o que era ruim ficou péssimo, o que era improvável ficou impossível. A crise sanitária paralisou (como deveria) os campeonatos e, na volta, (ir)responsáveis fizeram de conta que nada tinha acontecido. Uma gripezinha, no máximo. A mesma quantidade de jogos seria comprimida em poucos meses e gramados. Puzzle espaço-temporal de fazer inveja ao Christopher Nolan.
Abel veio, viu e venceu. Com pouco tempo e condições insalubres, foi campeão da Libertadores. Mas vitórias desportivas não escondem derrotas administrativas. Então ele reclamou, reclamou, reclamou, soterrado de razão. Encontrou quem lhe fizesse coro, certo? Errado. O que se se leu, o que se ouviu, o que se viu nos sites e nas mesas-planas? Que chora demais, que não consegue melhorar o time, que a Libertadores não é suficiente, que ele não é Jorge Jesus.
De repente, tudo o que parecia consensual virou problemático e interpretativo e, convenhamos, os jogadores ganham é para isso mesmo. Não se tem notícia de gladiador romano que se queixasse das lutas.
A imprensa especializada em si mesma não consegue decidir se é crítica ou cúmplice, se estamos bem ou estamos mal, se um estrangeiro pode falar a sério aos brasileiros ou se um brasileiro deve contar piadas ao português. Não decide se prefere Abel a Caim.
Como Brasil pouco é bobagem, eis que o vice-qualquer-coisa da gloriosa CBF vem a público e pergunta, com o cinismo dos psicopatas, por que razão o Palmeiras quis ganhar tudo. Isso mesmo: o culpado é o Palmeiras que disputou para vencer. “Eles não são obrigados… Quem mandou eles ganharem? Ganhem só metade, para não ter esse problema (de calendário)”.
Francisco Noveletto é o homem. Francisco Noveletto é um homem. Francisco Noveletto, mais do que homem, é legião. Porque, para muita gente, futebol ruim gera crise, que gera protesto, que que gera demissão, que gera manchete, que gera dinheiro.
Se piorar, melhora.
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