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Leandro Iamin: 'Entre o talento e o coração, Ary Borges se despede do Palmeiras como vencedora'

As lágrimas aliviadas de Ary após Verdão 4x1 Boca Juniors respondem com qual tinta a história foi escrita

Ary comemora o gol marcado contra o Santos, na final do Paulistão (Foto: Fabio Menotti/Palmeiras)
Ary comemora o gol marcado contra o Santos, na final do Paulistão (Foto: Fabio Menotti/Palmeiras)

A trajetória de Ary Borges ajuda a entender como se constitui uma carreira no futebol de mulheres do Brasil. Desde a saída do futebol pernambucano, ainda longe de ser um centro profissionalizado, até a ida para os Estados Unidos, que acontece agora com sua transferência, entender Ary é entender dilemas comuns às atletas – ainda que Ary seja tudo, menos uma atleta comum.

Quando a meia deixou o São Paulo, onde era muito identificada inclusive através do pai, sãopaulino fanático declarado, para defender o Palmeiras, quem vê o futebol feminino de longe conseguiu entender as dinâmicas reais nesta modalidade, tão diferentes das vistas com os homens. Temas como oportunidade salarial e estrutural foram debatidos sem o veneno das rivalidades. Agora, quando Ary anuncia mais um salto na carreira, fica fácil notar que o futebol brasileiro ainda não comporta jogadoras que se desenvolvem tanto quanto ela. Todo o público, seja
torcedor passional ou analista sensato, leu a transferência como passo natural.

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O que talvez seja distinto no caso de Ary Borges é o quanto de história há para se contar em tão pouco tempo, e o quanto isso nos ajuda a memorizar e catalogar as jornadas, heróicas ou fracassadas, das mulheres de nosso futebol. O Palmeiras de 2022, que, no fim, é o Palmeiras da Ary, chegou a ser o Palmeiras de um vexame inominável, quando, na semifinal nacional, o clube lidou com um afastamento (Agustina), uma deserção (Thais) e uma derrota humilhante (4×0 para o Corinthians). E, acabada a temporada, é possível classificar o projeto feminino do clube como antes e depois da primavera de 2022.

Nocauteado em casa pelo Corinthians, o clube tinha uma chance de restaurar sua imagem – e Ary, já em negociação com o exterior há tempos, sabia que esta chance determinaria a sua última imagem com a camisa verde. E esta chance era na Libertadores. Além dela, havia o Paulista, cujo nível técnico se assemelha ao da competição continental, mas o apelo, não. O Palmeiras, até os 40 do 2º tempo das quartas de final da Libertadores, parecia, se não nocauteado, ainda grogue. Aquela eliminação para o frágil Santiago Morning mudaria o tipo de despedida que ela receberia. A reação, no último respiro, veio.

Sem esta reação, O Palmeiras da Ary seria uma história amarga, marcada por seguidas derrotas em jogos decisivos e aparente dissolvição anímica, um time perdido, desconectado, desorientado, cujas mudanças se dariam compulsoriamente, não com sorrisos resignados. Quando Ferroviária e Corinthians foram eliminados da Libertadores, dando ao Palmeiras o peso de um favoritismo ambíguo, levantar ou não a taça se tornou ainda mais definidor da passagem da camisa 8, assim como de Bia, a 10, e outras lideranças. As lágrimas aliviadas de Ary após Palmeiras 4×1 Boca Juniors respondem com qual tinta a história foi escrita.

Partida entre Palmeiras e Grêmio, válida pelas quartas de final (jogo de volta) do Campeonato Brasileiro Feminino, no Allianz Parque, em São Paulo-SP. (Foto: Fabio Menotti)

Ary vai embora do Palmeiras como uma meia em desenvolvimento brutal. Aparece mais na área, faz mais gols, dá mais alternativas aberta pelos lados, tem mais participação com e sem a bola. Fez gols nas duas finais, mas sua participação nas partidas vai muito além disso. A caminho da titularidade na Copa do Mundo de 2023, Ary, ao se despedir, deixa ao Palmeiras o lembrete de seu lugar no mundo do futebol de mulheres. Já não será possível encontrar uma substituta com a mesma facilidade encontrada para tirá-la do rival tricolor. Será preciso mais do que apenas pensar o futebol à base do lema “contrate a melhor”. Para fins históricos, começa agora uma nova Era. O tempo pós-Ary.

Ary é um tipo de jogadora à flor da pele, que se emociona e enfurece com a mesma facilidade. Entre os dois sentimentos, um futebol sofisticado em passos de moleca, um jeito de jogar que transmite alegria. O Palmeiras de 2022, marcado pela história como campeão, não deixa, só por isso, de ter uma temporada controversa e problemática. Ary, pela quarta vez na carreira, dará um salto de estrutura, conhecerá um local mais profissional que o anterior, mas, agora, dela também se espera a maturidade que três anos atrás era problema de outras, não dela. E o Palmeiras terá seus velhos problemas para enfrentar, mas agora sem uma atleta decisiva para resolver em campo o que não se conserta fora dele.

O futebol brasileiro assistirá curioso esta nova etapa do futebol de Ary Borges, cujo desenvolvimento muito interessa inclusive à Seleção. A reação palmeirense de 2022, vinda a partir de um milagroso chute de Katrine quando tudo parecia perdido, não deixa claro se foi mais fruto do talento ou do coração de um elenco magoado. Ary Borges é a protagonista deste Palmeiras, e as dores e delícias enfrentadas pelo clube ao longo do ano contam um pouco de quem são suas autoras. Ary é talento e é coração. Há mais para ser. Nos Estados Unidos, em ano de Copa, valerá a pena acompanhá-la.

Ary dificilmente encontrará, no Racing Louisville ou noutro lugar, um ambiente tão instável e complexo quanto o vivido em 2022 em Vinhedo/São Paulo. O Palmeiras, por vias tortas e com jornadas agônicas, ajudou a amadurecer Ary, que, por sua vez, ajudou o projeto Palmeiras a ser, enfim, vencedor. Deve ter valido a pena para as duas partes, mas ambas ainda precisam e podem evoluir.

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