Luis Dias, sobre uso de Endrick por Abel: ‘Temos pressa para meter o pinto cá fora’

Responsável por revelar jogadores como Cristiano Ronaldo, ex-coordenador de base do Sporting falou com o NOSSO PALESTRA e comparou a gestão de um jovem talento ao desenvolvimento do ovo

Abel Ferreira é considerado um dos maiores técnicos da história do Palmeiras. No entanto, a trajetória do treinador começou muito antes do título da Libertadores, trabalhando nas categorias de base do Sporting, de Portugal, clube no qual jogou durante a maior parte de usa carreira como atleta.

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Quando estava na equipe lisboeta, o português teve a oportunidade de conviver com Luis Dias, responsável pela área de formação do time e por revelar nomes como Cristiano Ronaldo. O ex-coordenador conversou com o NOSSO PALESTRA e não poupou elogios ao responsável pelo bicampeonato consecutivo da principal competição da América do Sul, além de comentar a utilização de Endrick no elenco profissional.

Trajetória como treinador

Antes de trabalhar à beira do gramado, Abel jogou como lateral direito durante 14 anos, atuando por Penafiel, Vitória de Guimarães, Braga e Sporting. No entanto, mesmo vivendo bons momentos nos gramados, o ex-atleta já planejava o futuro.

Após uma lesão no joelho, o atual comandante alviverde teve de pendurar as chuteiras. Sempre com um plano em mente, o treinador mantinha anotações ao longo dos anos com o objetivo de ser um técnico de elite, como explicou Luis ao NP.

– Abel tem um grande mérito. Desde que começou a sua carreira como jogador, procurou se formar como técnico para entender melhor o jogo e, até mesmo, se tornar um melhor jogador. Isso o levou a fazer uma licenciatura em Educação Física, ainda enquanto era jogador de futebol. Isso porque ele queria estar preparado para quando a sua carreira acabasse. Enquanto era jogador profissional, ele estava se preparando para o pós-carreira. Foi aí que eu entrei junto com o Abel nesse processo. E, também, junto com a minha equipe técnica – um deles continua com ele, que é o João Martins. Na altura, a gente já tinha essa divisão de tarefas entre os treinadores. E o Abel sempre anotava tudo em um caderno, se preparando para se um dia ele fosse treinador. E eu achei essa parte do Abel algo surpreendente. Normalmente, o jogador quer disfrutar, quer só jogar… sempre acha que sua carreira vai durar o máximo possível e não pensa assim tanto no pós. E ele era diferente. Sempre registrava as coisas que os treinadores falavam e faziam, pois sabia que poderia utilizar aquilo – destacou, falando sobre a importância que Abel Ferreira dá para os jogador que sabe atuar sem a bola nos pés.

– Desde sempre, o trabalho que fiz junto com ele foi focado nos jogadores que não tinham a bola e não olhar para o processo na zona da bola. Ele chegou com a visão de envolver todos no processo. Isso é um grande mérito do Abel, pois ele entende que todos precisam saber o que está acontecendo em campo – completou.

O técnico Abel Ferreira e o analista de desempenho Tiago Costa (E), da SE Palmeiras, durante treinamento, na Academia de Futebol. (Foto: Cesar Greco)

Após passagens por Braga e Paok, Abel chegou ao Palmeiras com um currículo pequeno, mas contando com a confiança da comissão técnica. O português, então, iniciou o trabalho que, apesar de muitas críticas por parte da imprensa, colheu frutos como a Libertadores (2020 e 2021) e a Copa do Brasil (2020).

Com uma trajetória vitoriosa, o comandante foi escolhido como o 26º melhor do mundo pela revista ‘FourFourTwo‘. O palestrino foi o português com melhor colocação no ranking e, de acordo com Luis, isso é motivo de orgulho para os lusitanos.

– É uma grande satisfação para todos os treinadores portugueses e também para o nosso povo. Tenho consciência que o nosso país é muito pequeno e, tendo noção o tamanho mundo do futebol, alcançar o sucesso que nós temos, seja na formação de jogadores ou treinadores, é uma ocorrência estranha do ponto de vista positivo. Nós conseguimos concentrar muito talento em um país muito pequeno.

Ainda segundo Luis Dias, as conquistas do seu companheiro ficam ainda maiores em um calendário caótico como o do futebol brasileiro.

– Durante sua curta carreira, o Abel está trilhando um caminho muito interessante. A capacidade que teve de chegar ao Brasil, um país complexo de se trabalhar por conta do calendário, e manter a intensidade nessa quantidade de competições oficiais… é muito difícil. Quem vê de fora, pode pensar que é sempre mais um jogo, mas isso não funciona assim. É preciso de uma preparação de alto nível, pois só os melhores terão sucesso. De fato, o Abel provou que tem essa capacidade dos portugueses de se adaptar e conquistar. Quando se ganha uma vez, pode ser sorte. Porém, quando se ganha mais do que uma vez, prova a competência, dedicação e muita disciplina – elogiou.

– Se esse ano voltar a ter o sucesso que se espera, não sei se será o fim de um ciclo ou não… claro que todos os palmeirenses querem que o sonho possa continuar, mas também têm noção de que o mais difícil é sair por cima. Esse será o grande desafio ao final da temporada: perceber se vale continuar ou não. Nessa realidade do futebol brasileiro, em que não há paciência para qualquer insucesso… então, construir é muito difícil, mas destruir é de um dia para o outro. A imagem construída pelo Abel é, de fato, a mesma que ele é como pessoa.

Abel Ferreira Recopa
Foto: Cesar Greco / Palmeiras

Temperamento e teimosia

No Brasil, Abel e sua comissão técnica se destacam, além da qualidade nos treinamentos, pelo temperamento à beira do campo. O treinador, ao lado de João Martins, recebe muitos cartões e já virou meme na internet pelas reclamações durante as partidas.

De acordo com Luis, as atitudes do comandante não são novidade. Isso porque, desde quando iniciou no futebol, o português tinha muita vontade de ganhar e tentava passar o sentimento para os jogadores.

– Essa característica vem desde os tempos em que ele era jogador. Não acredito que alguém pode ser um bom treinador sem ambição de vencer, pois nós temos que passar essa ambição para os jogadores. Essa transmissão de energia e emoção é algo dele. O João, por sua vez, é um pouquinho diferente. Ele era assistente no começo da carreira e alguém muito organizado. Posso dizer que ele foi o melhor estagiário que eu tive, a organização dele era espetacular. E ele continua com isso desde então. O sucesso que ele tem hoje é fruto de toda essa dedicação que ele sempre mostrou. Eles foram criados em torno de muita pressão e sabem a importância de vencer. O problema de vencer é que, quanto mais vencemos… mais nos cobramos para vencer. Vencer é viciante. Ter sucesso é viciante,

Abel Ferreira em jogo contra o Botafogo (Foto: Maga Jr/Agência F8/Gazeta Press)

– Acho que as pessoas, quando estão neste patamar de exigência e grau de exposição midiático. Hoje em dia, um treinador de futebol profissional deve ter umas dez câmeras apontadas para ele, de todos os ângulos. Não se pode ver algo que seja diferente que vai criar um meme, rodar o mundo, se tornar viral. Eu acho que o João e o Abel são aquilo que são de forma genuína, são mesmo assim. Se eles não fossem, não estavam onde estão.

Além disso, Luis falou sobre a teimosia de Abel Ferreira, que, segundo ele, é uma característica pessoal do treinador. Para o ex-coordenador de base do Sporting, o palmeirense tem uma personalidade forte e isso é positivo, tornando-o insubstituível no Verdão.

– Acho que quando temos um traço de personalidade, mesmo que queremos contrariar, nomeadamente em situações de crise, toda gente está preparada para vencer, mas quando se perde uns reagem de uma forma apática, outros dão pontapés nas garrafas, cada um vai de um jeito. Mas acho que a teimosia do Abel é uma teimosia positiva. Nesta gestão do Endrick, ele não meteu quando todos diziam que tinha de meter. Meteu quando entendeu que havia condições para o menino ter sucesso. Até aí, contra tudo e contra todos, foi teimoso, mas venceu, no ponto de vista do grupo de trabalho, do Palmeiras, que vai ter um jogador mais preparado. Esse traço de personalidade vai ser sempre do Abel, no Palmeiras ou em qualquer clube em que esteja. Se ele sentir que não há condições de ele ser ele próprio, ele é o primeiro a sair. Um treinador com a personalidade que ele tem, jamais vai estar em um lugar em que ele não vai liderar todo o processo. É um traço de personalidade característico dos grandes líderes, que conseguem agregar as pessoas a sua volta, hoje ele tem a equipa, estafe técnico, a torcida com ele. O que é certo é que vocês vão sentir a diferença. Quando um foi embora (Jesus), não houve problema nenhum, mas quando o Abel sair, vocês vão perceber a ressaca que vai ser, porque não é fácil substituir alguém com esse carisma.

O técnico Abel Ferreira, da SE Palmeiras, em jogo contra a equipe do Fluminense FC, durante partida válida pela quinta rodada, do Campeonato Brasileiro, Série A, na arena Allianz Parque. (Foto: Cesar Greco)

Caso Endrick

Um dos principais desafios de Abel em 2022 é o caso Endrick. O jovem é uma das principais revelações da história do clube e, com apenas 16 anos, conta com o apoio da torcida para atuar entre os profissionais. O treinador, no entanto, trata a situação com cautela.

Até o momento, o atacante participou de apenas dois confrontos com o elenco profissional, e ainda não chegou a ser titular. Segundo Luis, este é um processo natural, assim como o desenvolvimento do ovo. É preciso ter calma para não causar danos ao “miúdo”.

– Eu não preciso dar receitas ao Abel, porque ele trabalhou na formação e sabe, como eu, aquilo que deve ser feito, mas vou dar a minha opinião para as pessoas que nos ouvirem tentearem ter paciência com aquilo que é a gestão de um talento. Não há dúvida de que estamos diante de um jogador que é diferenciado, mas eu comparo a gestão do jogador como o ciclo de um ovo. Quando olhamos para um ovo, sabemos que tem os genes que têm lá dentro, mas não sabemos bem o que vai sair dali. E muitas vezes, depois do pinto nascer, nós achamos: ‘Nossa, que giro (bonito)’, mas não sabemos que tamanho vai ter, como vai cantar, se vai ser reprodutor ou não. E ainda antes do pinto nascer, partir a casca, sabemos que para o ovo se desenvolver, temos de ter um contexto ideal para ele se desenvolver. Temos de colocar na chocadeira, ter a temperatura certa, e tem de estar lá por um certo tempo, e esse tempo foi o que o Abel esteve a fazer até agora.

– Apesar de haver uma grande pressão para utilizar o jogador, e quando o mete, será que vai ao Mundial. O que o Abel esteve a fazer foi deixar o ovo na temperatura certa, durante o tempo necessário, para perceber quando o pinto vai colocar o bico para fora, e vai ele próprio partir a casca. Porque nós nunca sabemos se colocamos pressão demais, ou temperatura demais, no ovo enquanto ele está nesta fase de gestação, provavelmente cozemos o ovo e não vai ter pinto. Ou partimos a casca antes do tempo e ele não se vai conseguir gerar. Esse é o grande drama dos talentos em Portugal atualmente, e no Brasil, que é termos uma pressa desmedida para meter o pinto cá fora, no sentido da ave ter de começar a voar, mesmo não tendo penugem, mas queremos que a ave comece a voar antes da idade. Isso muitas vezes mata de uma maneira precoce, quer pela pressão, pelo ambiente. Hoje em dia, toda a gente anda a volta de um jogador com essas características, a família, os agentes, a mídia, as redes sociais, e de repente isso é uma temperatura excessiva, uma agressividade enorme para a casca do ovo e muitas vezes ela vai quebrar antes do tempo. Felizmente, o Abel fez aquilo que tão bem sabe fazer na gestão de jovens talentos.

O técnico Abel Ferreira e o jogador Endrick (D), da SE Palmeiras, em jogo contra a equipe do São Paulo FC, durante partida válida pela trigésima segunda rodada, do Campeonato Brasileiro, Série A, na arena Allianz Parque. (Foto: Cesar Greco)

Com Endrick no elenco, existe a expectativa de que o jogador ganhe minutos no sábado (22) contra o Avaí. O atleta participou do clássico contra o São Paulo e, agora, diante de um adversário menos complicado, pode até mesmo iniciar o embate.

No entanto, para Luis, este não é um fator que Abel levará em conta. Isso porque não existem presentes no futebol, e se o atacante for escalado será porque trabalhou e mereceu ganhar a vaga.

– Uma das coisas que eu aprendi há muitos anos no futebol é que não podemos dar presentes a ninguém. O futebol tem de ser justo. Quando você tenta colocar um jogador em campo que, se calhar, não é o que trabalhou mais, está em melhores condições, o grupo vai reagir. Podem não dizer nada, mas você vai sentir quando começar o jogo. O que sinto é que, independentemente do adversário, a partir do momento em que o Abel a estreia desse jovem talento, ele tem na sua cabeça um plano de desenvolvimento para ele. Já o tinha antes, mas depois da estreia o Abel sabe exatamente o que quer dele. E ele (Endrick) nunca irá jogar porque é contra um clube mais fácil, o Abel nunca irá fazer isso. O Abel irá fazê-lo que ele já está preparado para ser titular. Jogar porque é o mais fácil, o mais fraco, vai lhe dar um bombom, isso nunca. Isso não é do Abel. Foi assim que ele construiu a sua carreira e teve sucesso.

Felipão ou Abel?

Por fim, Luis comparou Abel e Felipão. Enquanto o português faz história no Brasil, o brasileiro foi fundamental para a construção de uma forte Seleção Portuguesa que chegou à final da Eurocopa em 2004.

– Felipão, estamos a falar de uma carreira completa. É alguém que fez uma carreira brilhante, fez na Seleção Nacional o que o Abel está a fazer no Palmeiras. Pela primeira vez, vi toda a gente integrada, com bandeirinha no carro. Isso foi culpa do Felipe Scolari. Ele conseguiu fazer outra coisa, nos treinos da seleção A envolvia sempre quatro ou cinco meninos das camadas jovens. Há jogadores que foram campeões da Europa que como Sub-15 ou Sub-16 foram treinar com o time profissional no Euro 2004. No fundo, o Abel conseguiu fazer isto de uma forma inversa, ir para o Brasil e envolver a massa adepta, o grupo e a cidade. Quem não era Palmeiras já começa a sentir carinho pelo Palmeiras, porque eles ganham sem ofender, por mérito, e isso perdura no tempo. Não vou dizer quem é o melhor, acho que, de fato, são os dois muito bons, e principalmente com aquela mística de não só pôr a equipa a jogar bem, mas todas as pessoas vão estar com ele. Isso é fantástico.

Luis Dias trabalhou no Sporting durante mais de 20 anos. No clube, participou da formação de jogadores como Nani e Cristiano Ronaldo, além de estar presente no início da trajetória de Abel Ferreira como treinador profissional.

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