Não se pode ver o futebol com olhos oblíquos e dissimulados

Foto: César Greco

Você conhece Dom Casmurro? Velho desenganado que narra a própria narrativa e que conta um grande causo. Aquele que viu da forma errada e perdeu a felicidade. É parecido com uma história que você tem visto bem de perto. Confie.

Há pouco mais de dois anos, Roger Machado deixava o Palmeiras após uma derrota lamentável para um Fluminense frágil, mas, acima do resultado, por uma coletiva desastrosa que sucedeu aquele revés. Roger parecia não ver o que todo mundo via e seu mundo paralelo de Palmeiras cavou o fim de sua promissora passagem pelo alviverde. Os insucessos atrapalham, mas a cegueira interpretativa é letal.

Vanderlei Luxemburgo parece viver uma fase claudicante que abre caminhos para uma cagueira decisiva em sua trajetória. Por mais que existam fatores diretivos poderosos e que influenciam diretamente nesses maus resultados, a passividade do experiente treinador causa surpresa em quem se acostumou a ver alguém tão vívido e intenso.

Os discursos incoerentes são a maior marca dessa situação embaraçosa. Ainda na suntuosa Florida Cup, Vanderlei dizia que Raphael Veiga fazia a função de ponta por uma circunstância, que era dar ritmo para Lucas Lima, mas foi enfático em sublinhar: Veiga não é ponta. Concordamos, todos. No princípio de Paulista, o canhotinho ainda fez outros ‘sacrifícios’ por aquele lado e Lucas, o privilegiado, logo foi pro banco. Ritmo.

No retorno após a pandemia, Vanderlei perdeu Dudu. A pior baixa que poderia ter. A mais decisiva, mas o problema começa antes desse momento crítico. Voltemos alguns meses para começarmos a entender. Passando ‘limpo’ pela janela de transferências, Vanderlei se dizia satisfeito, mas internamente era de conhecimento geral que seu desejo por Rony era enorme. O clube foi às últimas consequências e fechou o negócio por cifras que superam os 30 milhões de reais.

Era a opção veloz que ele desejava pro time. Atendido, logo usou o ligeirinho no time titular ao ponto de trazer Dudu para a armação, inclusive no lugar de Lucas Lima, a quem Vanderlei chamava de ‘melhor do Brasil’. Era o time dos 4 atacantes que tinha em Dudu seu cérebro e em Rony, suas pernas. O treinador parecia ter encontrado seu modelo de time. Ao menos na ideia, até porque no campo as coisas não iam exatamente bem. Dos rivais de série A, o Palmeiras ganhou de ninguém.

Futebol para por meses. Meses para ideias, para modelos, para ensaios. Duas semanas de treinos para o mesmo fim. Convenhamos que horas não foram um problema. Primeiro desafio do retorno, um Dérbi. Três meio campistas e três atacantes. Na prática, Zé Rafael substituia Dudu e o modelo era mantido em sua totalidade. Não funcionou. Zé acabou fazendo a função de um ponta improvisado e Bigode tentou ser um meia improvisado. Improvisou-se o fracasso.

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Foto: César Greco

No segundo desafio, Gabriel Menino e Luiz Adriano, os melhores do clássico, são premiados com a reserva. Raphael Veiga, pela vigésima oitava vez, é improvisado como um meia lateralizado e Lucas Lima retorna à armação. William, pela trigésima nona vez, é testado na referência. Rony fica como única opção de velocidade. Parece haver um looping de usos e fracassos. Os meias jogam, falham, saem, voltam, jogam, fracassam. Improviso. Projeto de tentar. Até acertar. Quando?

O momento Machado aconteceu logo depois de uma virada quase que ao acaso, diante do majestoso Agua Santa, no Allianz Parque. Vanderlei, além de exaltar a atuação cafajeste do time, tratou sobre Rony. Segundo ele, o camisa 11 tem um perfil que não se adapta exatamente ao Palmeiras. A frase tem tanto equívoco que chega a doer. A começar pela ideia falha que que o ligeirinho precisa de um futebol ‘reativo’. Ele não precisa. Talvez ele precise que a situação de ataque não demore duas semanas para chegar a ele e evite o encaixotamento da marcação. Quase uma conclusão tipo 2 + 2 = 4.

O conceito de que o Athlético de Nunes é reativo, dito pelo comandante, é horroroso. Nunca foi. Nem perto. Com gosto pela bola, a equipe tinha muita circulação e marcação alta. Luxa pode ter tentado dizer sobre uma transição veloz. O que gera ao atacante a chance de decidir na velocidade, afinal, enfrenta uma defesa se montando, em movimento. Ao invés de ter de encarar duas linhas postadas como paredes. A velocidade de construção do Palmeiras se assemelha à minha, com o físico de um hipopótamo, subindo a Brigadeiro Luis Antônio na São Silvestre.

A avenida Diogo Barbosa, por sua vez, Luxemburgo diz estar extinta. Muito me lembra o modus operandi através do qual o coronavírus foi extinto do Brasil. Tão verdadeiro quanto. Ao que parece, o gol do solerte Água Santa não se construiu na minha lateral, mas na de Diogo que, agora, segundo o professor, ostenta orgulhosamente três quilos a mais de massa muscular. Talvez se aventure no peso pena do UFC. No futebol está meio difícil.

Luxa parece Bentinho. Horas inocente, horas culpado. Capitu é o futebol que ele pensa jogar, que ele julga praticar e que ele deseja atingir. Como bom leitor desenganado de Machado, do Assis ou do Gaúcho, não creio no amor. Tampouco em Bentinho. Muito menos nessa cegueira que parece tomar conta do enredo. Ou acorda, ou vai acabar como o personagem. Contando, frustrado, sobre suas tristezas.