Uma carta e um cordel para Prass

Arte: Arte Palestrina

"Você lembra, lembra, daquele tempo?" Sim, eu me lembro bem das estrelas nos olhares sempre tensos e intensos debaixo da carente meta alviverde. Era mais forte e veloz do que qualquer mocinho que tentava substituir a santidade que habitava aquele espaço. Com jeito de herói, ainda que com cabelos grisalhos e corpo esguio, Fernando chegava para passar pelo ano mais difícil dos últimos muitos. Sapato velho para um pé que vinha descalço.

Água de alguma fonte de juventude poderia explicar como o Benjamim Button do gol palmeirense reescrevia, no momento em que se os terrestres encerram, uma história com ares de Hollywood. Pra quê envelhecer? Como quisesse roubar da vida uns anos pra se divertir, o então camisa 25 conduziu a duras penas, de esforço, de suor, de muita luta e preocupação, um time despedaçando-se vivo para que pudesse se manter na elite do futebol nacional. Um all-in que se encerraria na voz ofegante, na lagrima enclausurada nos olhos e nas palavras confusas que Prass dizia: "vocês não sabem o peso que sai das costas, ufa, meu Deus do céu".

Experiente na tarefa de sofrer, soube como ninguém fechar aquele ciclo dolorido porque sabia que há um segundo sol logo na esquina do temporal. Por mais que não fosse mais tão veloz quanto os heróis, era aquela velhice catedrática e emocional de quem todo ser humano do bem e de bem precisava ter por perto. Era capitanear uma família de milhões que suava por desejos que pareciam ainda longe, mas essa mesma família viu nessa pessoa alguém em quem confiar, afinal, por mais que a música mande que confiemos em si, é reconfortante ter em quem confiar. Prass.

As flores de maio vieram murchas, um tropeço que a vida se encarregou de colocar em vaso de cristal, terras adubadas, papéis de seda e laço com o título da Copa do Brasil, como pênalti que me causa arrepios e lagrimas nos olhos até hoje, aqui, escrevendo essa singela homenagem. Aquele que fez a mim e a uma dezena de milhões perderem a noção do que era problema por algumas horas, nos fez achar que o mundo era perfeitamente verde, que o pastor eram os homens de Deus e nada mais. Que gol era coisa de Gabriel, mas só o de Jesus. Que pênalti era coisa de goleiro, mas pra cobrar.

Sorte nossa que os velhos são sempre melhores. A beatificação de Marcos, a idolização de Fernando. O capitão emocional de um povo tão instável quanto à bola. Restava trazer nos braços o campeonato brasileiro, mas o cotovelo não deixou. As olimpíadas cabiam no colo, mas os cotovelos… Prass é abençoado. Campeão dos olhos. Abriu caminho para Weverton e Jaílson brilharem, um com a medalha que o país tanto quis, com um pênalti nas mãos. O outro, capítulo particular dos gênios, ganhou o posto e o manteve invicto até devolver ao dono em um momento que significa até mais que um simples troféu. A troca da guarda britanicamente alviverde foi algo de mágico. Choramos, eu sei. Prass saia de cena discretamente e dava aos dois pupilos, o presente e o futuro.

O universo é anacrônico, a música, improvável e inspiradora. A história desse cara, tudo isso. De caráter inabalável, viu do banco o ano mais promissor desde 1914 começar e nunca bradou negativamente. Fora do banco de reservas no maior jogo do ano, comemorou como criança, um sapatinho novo, a vitória na Argentina. Como sapato velho, como o Roupa Nova, teve um novo momento. Turbulento, complicado, tenso, tudo o que ele viveu no início desta crônica e da passagem dele pelo maior campeão do Brasil.

Nada mudou. Ele nos capitaneou de volta pra paz. Defendeu nos braços quaisquer instabilidades, mais um pênalti À PRASS e explodiu. Viveu o momento. Nos trouxe a genuína emoção de um jogo de futebol, de torcedores e seu ídolo. Nada mais importou. Em uma época em que as coisas externas confundiram nossa noção de quem somos e pelo que lutamos, a vida incumbiu Fernando de reavivar esse sentimento. Ele sempre foi nossa dose de serenidade, de amor, de consciência, de respeito.

Nos últimos dias, nunca se rebelou, apenas de revelou o ídolo que nunca se escondeu de ser. Acadêmico, do banco, regia quem corria. O primeiro a comemorar o gol, o último a deixar o treino. A primeira lágrima no apito final do Deca. O abraço com os irmãos de casamata. Nosso Fernando. Nossa quase década juntos. Da B pro décimo. Do Vasco para as memórias infinitas.

Foi a quem dediquei meu abraço mais sincero ao final de uma entrevista que me fez perder o sono por dias, que fez minhas mãos tremerem, fez minha gratidão explodir. Foi o ídolo da minha geração que nasceu campeã, mas cresceu carente. Foi o homem que ensinou como ser gente. Foi o jogador que nos defendeu fora de campo, que encarou tudo e todos por nós. Foi quem deixou sua casa em uma segunda-feira para contar sobre a vida para meia dúzia de fãs e encerrar o dia no Outback que fica ao lado de casa. A nossa e dele.

Fernando vai como os maiores vão. Idolatrado. Celebrado. Canonizado. Sem a última cena, sem o pós crédito, sem o respeito do poder, mas com o poder imensurável do amor popular. A saga do herói. Do autor do meu sonho. Da reconstrução. Da paixão, desse século, do alviverde.

A ele, minha gratidão eterna.

Do fã, aprendiz e jornalista, com enorme carinho,
João Gabriel Falcade.