Opinião

Mauro Beting: O filho que não viu o Deyverson

(Foto: Arquivo pessoal)
(Foto: Arquivo pessoal)

Meu amigo Danilo Melo escreveu na emoção da conquista da Libertadores de 2021. Sem revisão de texto. Como deve mesmo ser.

UMA TARDE COM MEU PAI
11/08/2022

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Olá, Mauro.
Sei que há um bom tempo eu tinha dito em uma mensagem, pelo Twitter, que iria mandar um texto pra ti.
Não vou falar que foi um sentimento interno, intuição ou algo parecido (não sou dos mais holísticos). Mas percebia que realmente não era hora de enviar o tal texto.
 
Mas venho contar do jogo mais emocionante da minha vida. Um que eu não assisti e provavelmente jamais assistirei.
Talvez a história seja longa, espero não te aborrecer ou atrapalhar o seu tempo, que é tão curto  e fracionado nos 14 mil empregos e atividades diárias que você. exerce.
 
 
 
28/11/2021 (madrugada, entre 3h00 da madrugada)
 
É dia 27/11/2022.
Final da libertadores em Montevidéu.
Não me sinto ansioso e nem emocionado.
Amanhã, faz 8 meses que o heroí da minha vida se foi, e a data que completa o ciclo mensal da ida, me fere bastante.
 
Voltemos ao dia 27.
Acordo desanimado.
Tomo banho e desço até a sala, que há 10 meses foi o local onde tive o melhor dia da minha vida com meu pai: a final da libertadores contra o Santos.
Lembro que, naquele dia, rezei 5 rosários
 
(1000 ave Marias) para a vitória do Verdão.
Imagine se eu não ficasse 6 horas de joelho…E vocês da imprensa ainda rotularam Breno Lopes (ídolo) como o herói daquela tarde.
 
Mas não irei me envaidecer da conquista hercúlea conquistada por minhas orações, tudo pelo meu time e pela alegria do meu pai.
Eu sabia que os rituais de superstição não seriam suficientes.
5 rosarios foi o mínimo para o milagre daquele gol, que foi o que eu mais vibrei junto ao meu pai.
Dois karas quebrando uma casa inteira e chorando.
 
Ontem seria o dia mais feliz da minha vida com ele, ao lado da final passada (contra o Santos)  e daquele Rosário Central pela
 
libertadores de 16, onde ganhamos de 2X0, mas merecíamos ter tomado 18×2.
Contra o Rosário, foi a primeira vez que o senhor Hélio foi ao novo Allianz Parque, juntei minhas economias e consegui pagar duas cadeiras leste pro velho.
 
Estou emocionado, Mauro, irei tergiversar…
 
 
Uma realidade intuitiva dessa final que acabamos de ganhar: eu tinha certeza que venceríamos, e eu nunca estou confiante em uma final.
Talvez por estar desanimado e não dar a mesma importância para o futebol, a mente crítica fica mais lúcida e receptiva para alguns sinais da Força que
domina o mundo.
 
É 14:00 horas, fico ansioso e começo a
 
chorar lembrando do evento que irá ocorrer.
“Ele tinha que estar aqui”
 
 
Decidi não ver o jogo, o Palmeiras não me importa mais, mas mantenho os rituais de superstição.
O time não me importa mais, mas eu o amo e ele precisa das minhas superstições.
São singelas, mas sempre garantiram lindas vitórias.
Elas são: usar as cores do adversário;
não comer feijão no dia do jogo.
 
Me abstenho do feijão, que é para não pesar na barriga de nossos jogadores.
E as cores do adversário? É simples.
Sou um kara bem azarado, então,  me travesto com as cores do adversário, e o
 
mesmo será intensamente nutrido com a mesma abundância de azar.
Não sei se sou azarado, mas parece que algo aconteceu na prorrogação…
 
E o que será que é a sorte? Talvez ela exista!
Um raio pode cair na nossa cabeça, dependendo da situação, isso também é sorte.
 
Visto uma camiseta vermelha e pretae sento no nosso pequeno sofá.
Faltam 30 minutos pro jogo começar.
Estou tendo um ataque de pânico, minha respiração está opressa, o ar esta fugindo de meus pulmões, igual fugiu dos pulmões do meu pai e que ele tanto necessitava, há 8 meses.
 
Subo para o quarto do meu pai, pego sua
 
imagem de Nossa Senhora de Aparecida, visto sua camisa da sorte (a camisa do Palmeiras mais surrada que existe!) por baixo da camiseta vermelha, travestida de  “manto Rubro-negro” e decido ir ao cemitério.
Não quero assistir esse jogo, eu tenho que estar perto daquele que sempre compartilhou esses momentos comigo.
 
Chego ao cemitério da vila formosa, me dirijo até sua nova morada.
Enquanto subo a ladeira da memória, ligo o fone de ouvido no rádio do celular. Dois minutos depois o Nilson narra o gol do Raphael Veiga. Agora meu coração está acelerado, eu que não dava importância pra esse jogo, me pego ansioso.
 
Chego ao túmulo da ternura da minha vida, perto de encerrar o primeiro tempo.
 
 
A necrópole está desértica, a ala das vítimas de Covid é uma das últimas do maior cemitério da América Latina.
Agora irei descrever apenas os últimos momentos do jogo, já que o segundo tempo foi apenas terror e ruído.
 
Espero que todos os palestrinos tiveram a mesma certeza absconsa (da qual os místicos chamam de intuição) que eu tive quando o Abel colocou o Deyverson.
 
Nem lembro quem saiu, era óbvio para os terrenos extrafisico quem seria o autor e herói da vitória, era só esperar o desenrolar do roteiro de Deus.
 
(Nilson César: “Bobeou, Deyverson ganhou, olha o gol do Palmeiras. Tocou, bateu, é gol!!!!!)
 
 
Fico atônito e paralisado (a narração do Nilson me emocionou). Num reflexo involuntário, estava pegando um punhado de terra do túmulo do meu pai com as mãos, eu queria muito abraçar ele.
 
 
 
Escanteio para o rubro-negro carioca, é a última chance do Flamengo…..
 
 
Dia 28/03/2021, meu pai faleceu.
Naquele dia, o hospital tinha colapsado e os funcionários, em sua grande maioria, estavam na ala psiquiátrica.
Sem muitos funcionários naquele dia, todas as pessoas, com as próprias mãos,  retirarem e carregarem o corpo de seus entes queridos em direção ao caixão.
 
De maneira alguma quero culpar os profissionais. Eu vi a ala psiquiátrica, todos os olhos estavam vidrados tamanho o horror que estavam vivendo. E os que conseguiram permanecer, eram de uma doçura que nos humilhava.
Lembro de um enfermeiro trabalhando com arritmia, nem sabia que isso era possível.
 
Enfim…carregar o corpo do meu pai até o caixão, me deixou em estado de choque, tao chocado que eu não chorei naquele dia.
A cena da dupla mortalha, das têmporas cor de púrpura, o pescoço inchado devido ao tubo, tudo isso não me faz  dormir até hoje….
 
Nestor Pintana apita o final do jogo, Nilson narra que somos tri.
 
Começo a chorar de soluçar, amanhã faz 8 meses que ele se foi.
Fiquei ali ao lado daquele portal pra eternidade, que esta depositado o invólucro de todo meu amor e ternura da minha vida.
Até as 21h00 da noite, deitado sobre o túmulo do senhor Helio,  eu chorei as lágrimas de 8 meses.
Ninguém nunca lavou a alma quanto eu.
 
 
Hoje assisti seu depoimento sobre o grandioso Joelmir Beting. Amanhã fará 9 anos que o seu pai se foi.
Foi lindo, chorei, me emocionei demais. E é claro, Mauro, nossos pais empurraram aquela bola pro Deyverson, todos os palmeirenses que se foram empurraram aquela bola. Um campo de futebol parece ser preenchido de elementos ou entidades
 
metafísicas. Arrisco eu que nem os cemitérios contenham tantos da estirpe incorpórea que nos norteia.
 
 
Dias atuais
Até hoje não assisti o jogo e acho que nem assistirei, era um costume nosso assistir o VT do jogo do título.
Enfim…
 
Essa é uma história de dois caras que não sabem exatamente o que é dizer “eu te amo” (Aliás, a única vez que seu Helio disse um “eu te amo”, foi na última vez que eu o vi.
Nesse “Eu te amo”, com os pulmões arfando, eu retribui com o meu segundo “eu te amo” para o senhor Hélio. O primeiro foi naquele dia contra o Rosário Central, logo após o Gol de Allione).
 
 
Enfim….respiro profundamente o ar que faltou ao meu pai e lhe envio esta carta. É de um admirador de sua escrita e de sua carreira.
 
E outra atualização: o amor e as ansiedades causadas pela Sociedade Esportiva Palmeiras, retornaram.
 
Um grande abraço, Mauro!
 
Que Deus abençoe a ti e a todos que você.

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