Libertadora

Por Caio Carrieri

O antebraço em riste e o punho cerrado se erguem irrefutáveis: Avanti, Palestra!

O gesto e a frase podem ser triviais na vida de muitos palmeirenses, mas isso não se faz realidade para Neide Carrieri, torcedora de 80 anos tardiamente diagnosticada com Alzheimer.

A poucos dias da final da Libertadores de 2020, ela se senta no sofá da sala, imóvel por causa das desorientações no tempo e no espaço que infelizmente tomaram conta do corpo e da mente da minha amada avó.

Tento perguntar a ela o nome do apresentador famoso na TV, mas, como de costume, ela permanece estática, com o olhar vago, desinteressada por tudo o que a cerca naquela tarde quente de janeiro.

Até que recorro ao emocional: “Avanti, Palestra!”.

Ela diz nada. Mas levanta o braço para mostrar que, se não está ali de corpo, está de alma. E coração.

Adepto de dezenas de superstições que sou, abro um sorriso esperançoso diante da reação mais genuína que recebo dela em pouco mais de um mês de visita.

Paulistano, moro há seis anos na Inglaterra. Com a pandemia do coronavírus e o iminente anúncio de mais um lockdown em dezembro, decido vir de surpresa ao Brasil no início de dezembro de 2020.

A intenção é comemorar ao lado da família, de uma tacada só, o meu aniversário no início daquele mês e, mais importante, a existência da Neide na minha vida. Afinal, o quadro é crítico e não sei por mais quanto tempo poderei contar com, depois da minha mãe, a maior referência da minha vida.

Com muito orgulho, fui criado também pela avó. A minha mãe, Maria Augusta, trabalha desde sempre. Por conta disso, passei grande parte da minha infância com a Neide, responsável pelo melhor macarrão com molho de brachola que esse planeta já viu.

Ela parou de estudar no ensino fundamental, mas são inesquecíveis as tardes em que me ajudava a aprender a somar, subtrair e dividir. Do jeito dela e com aquela letra redondinha, aprendi.

O aprendizado também se estende ao futebol. Ao Palmeiras.

O chute cruzado de Edmundo, no Morumbi, contra o Vitória, no título brasileiro de 1993, marca a minha primeira memória de vida. De outra sala, daquela vez em Santana, na Zona Norte de São Paulo, assisti ao Animal estufar as redes, para alegria do meu avô José Carrieri Neto.

Filho de italianos, o Zé Galinha, com o apoio imprescindível da Neide, firmou de vez as bases da família no Brasil. Malandro do Brás, o Zé Galinha estabeleceu um comércio que, depois de muitos anos, proporcionaria à família uma estabilidade financeira muito acima da média no país – condição privilegiada que atualmente me permite cruzar o Atlântico com certa frequência.

O seu legado no círculo familiar, inegavelmente, passa pela alma festeira, mas, acima de tudo, reluz verde e branco. À exceção do meu irmão Diego, simpatizante pouco entusiasmado do clube da fila, mas por quem daria a minha vida e de quem tenho eterna saudades, todos somos palmeirenses.

Em 1999, tivemos o privilégio de assistir, da numerada descoberta do Palestra Itália, ao Palmeiras levantar a Copa Libertadores. Nos gols de Evair e de Oseas, e no pênalti cobrado fora por Zapata, abracei o meu irmão, a minha mãe e a minha avó. Ao lado deles, senti o sabor de pintar a América de verde. O Zé Galinha tinha nos deixado havia três anos, precocemente, aos 56 anos.

Ali ele estivesse, haveria apenas um grito: “Chupa que a cana é doce!”.

Quis o destino, a vida, São Marcos e o Divino Ademir da Guia que, 22 anos depois, eu estivesse ao lado da Neide em mais uma decisão de Libertadores.

Em condições normais, eu não estaria no Brasil. Não haveria pandemia. Lockdown não faria parte do meu vocabulário. O meu voo de volta para a Inglaterra, previsto para 10 de janeiro, não teria sido cancelado. O Reino Unido não teria suspendido a entrada de passageiros de toda a América do Sul. O Brasil não seria governado por um genocida entusiasta da tortura.

Todos esses fatores infelizes me aproximaram de quem mais me quer por perto e com quem mais me interessa compartilhar conquistas – de preferência do Palmeiras!

A cada FaceTime, a Neide me pergunta, do jeito dela e com a ajuda da minha mãe para se comunicar, por que ela não me achou na TV. Faço cobertura de futebol há 12 anos, mas no imaginário dela, o neto está no campo. Ou pelo menos deveria estar.

Amor de vó é o mais puro, genuíno e lindo. O coração trinca mais um pouco a cada pergunta por causa da ausência.

Antes da final no Maracanã, faço questão de pegar a minha vó pelo braço e a levo de frente para a TV. Pergunto sobre a decisão de 1999, e ela abre um sorrisão, dizendo que lembra.

Diante daquele semblante radiante de vó e com o inesperado “Avanti, Palestra!” de punho em riste do meio da semana, nem Pelé impediria a América de voltar a ser VERDE de novo.

Fica na conta de Abel Ferreira e na cabeça de Breno Lopes o meu primeiro abraço na Neide na pandemia. O de campões da Libertadores.

(PS: dedico esse relato a Felipe Buonamici Monte Oliva, meu amigo-irmão alvinegro que pouco se importa com futebol, mas que é o parceiro que qualquer pessoa gostaria de ter perto de si. Foi em uma noite às vésperas da final do Maracanã e regada a 30 litros de chope, para aliviar a minha ansiedade, que conversamos mais uma vez sobre a vida e, como sempre, nossos avós. Seu avô, onde quer que ele esteja, sente muito orgulho de você e da Canana. Te amo, Fefo!)

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do NOSSO PALESTRA.