Evair, 53

Dezesseis anos e nove meses se passaram naqueles seis segundos entre o apito de José Aparecido de Oliveira e a bola ultrapassando a linha fatal do goleiro deles, o Wilson. (A frase que você acabou de ler levou o mesmo tempo que Evair Aparecido Paulino gastou para perceber a autorização do árbitro, correr para a bola, deslocar o goleiro deles, e entrar para a história).

Fosse um dos não poucos bagrecéfalos que infestaram o manto verde nos anos de fila, o palmeirense poderia, naqueles momentos, estar mais amargurado que aquela torcida que foi deixada na fila pelo Palmeiras, em 1974, e que, naquele 12 de junho de 1993, ajudava o rival figadal a sair do jejum de títulos para entrar na antologia.

Mas, não. Era Evair. Ele soltou o pé que por 18 vezes balançara a rede naquele Paulistão de 1993. Era um ritual esperado e sacramentado. Gol de pênalti de Evair. Três pontos finais. Nada mais natural, nada mais palmeirense. Mas, mesmo nas coisas mais simples e especiais, mais esperadas e consagradas, há uma emoção que não se consegue descrever. Não se consegue deter.

Tente você, palmeirense, lembrar daqueles seis segundos de 25 anos atrás. Tente imaginar o que você pensou – se pensou; o que chorou – como chorou; o que gritou – e como berrou, naquela bola que entrou no canto direito do gol, no lado esquerdo do peito. Se é que você, palmeirense, viu mesmo aquela bola entrar, lá no Morumbi; se é que você, palestrino na televisão, conseguiu olhar para aquela tela que tantas vezes amaldiçoou por 16 anos; se é que você, verde de ouvido no rádio, conseguiu ouvir alguma palavra metralhada na imaginação dos narradores; se é que você, palestrino como o meu pai, o velho Joelmir, que não tinha coração para ver e ouvir o jogo, com Mozart no fone de ouvido do quarto de casa, viu alguma coisa quando o matador matou o jogo, eles, e a fila.

Matador? Eu, como jornalista esportivo, palmeirense e gente de paz, não necessariamente nessa ordem, nunca gostei do termo. Mas o Evair cai como chuteira nessa acepção. Cirúrgico, preciso, eficiente, frio, disciplinado, objetivo, profissional, equilibrado, Evair fez da vida de jogador um filme. A história dele no Palmeiras é de cinema. Chegou quase como contra-peso de Careca Bianchezi em 11 de junho de 1991 (quase dois anos de O Dia), foi afastado sem motivo e sem razão por Nelsinho Batista em abril de 1992 (justamente o treinador deles, na decisão de 1993), esteve estourado na fase decisiva do campeonato.  Mesmo baleado, o matador voltou à trincheira no duelo final.

Parece roteiro de novela mexicana. Mas é um clássico palmeirense de superação. “Boi, boi, boi, boi do Maranhão/ Viola artilheiro, Evair campeão”, pedia e gritava o palmeirense pelo Morumbi, por São Paulo e pelo Brasil naquela gelada tarde de sábado, ótima para namorar, maravilhosa para amar a primeira paixão das nossas vidas.

Você não nasceu amando uma cidade, um país, um filme, uma canção, uma mulher, um político, um partido, um ator, um autor, um músico, um macarrão, um cigarro. Você cresceu amando a sua família. Você nasceu torcendo pelo seu time. Você pode trocar de partido, de político, de mulher, de sexo, de carro, de tudo – mas não troca de paixão. Você nasceu Palmeiras, vai morrer Palmeiras. Como meus filhos Luca e Gabriel. Como meu amor Silvana e minha filhota Manoela.

Evair, profissional da bola e do gol, é um que pode trocar de paixão pela vida que levou. E a vida o levou ao Palmeiras. E ele vai levar o Palmeiras da vida. Mas só quando em Crisólia resolver sair deste campo. Porque o palmeirense não vai deixar Evair sair de nossa vida.

Evair fez, naqueles seis segundos de 12 de junho de 1993, toda a vida verde valer a pena. Cada ano vazio dos 16 valeu por aqueles instantes de Palmeiras. Todas as derrotas do mundo, do Brasil e de São Paulo acabaram valendo o pesar só para que o palmeirense pudesse sair da fila contra eles. Obrigado, Guarani-78, XV de Jaú-85, Inter de Limeira-86, Bragantino-89, Ferroviária-90. Todos vocês nos ajudaram a ser o Palmeiras-93. A Via Láctea da Parmalat. O time de Evair.

Ele mal tinha condições de suportar 90 minutos. Ficou 101 em campo. Estará eternamente em nosso campo dos sonhos. Fora do time, Evair continuou com a alma no gramado, ali no fundo do campo, chutando cada bola como se fosse a última, como se fosse você, como se fosse eu, como se fosse o alviverde inteiro. Gritando para os adversários as mesmas palavras que qualquer torcedor urrava. Se é que ele e o palmeirense ainda tinham voz.

Evair não nasceu palmeirense. Mas virou palmeirense, como ele virou o palmeirense em 1993, como ele virou a nossa vida naqueles seis segundos. O time todo foi maravilhoso naquele jogo. De Sérgio a Zinho, o grande Zinho, de Antonio Carlos e César Sampaio, o enorme capitão com uma bola no tornozelo inchado, de você a eles, todos foram imensos. Campeões. Palmeirenses.

Mas nenhum foi Evair. Com todo o respeito a César, a Heitor, a Mazola, a Romeu Pelliciari, a Vavá, grandes craques de grandes gols, grandes craques-bandeiras, Evair é Evair. Basta.

Nenhum outro desses tantos mitos teve tanta pressão num só lance, num só chute. Ele pareceu correr em 1976 e só chegar à bola em 1993. “Quando eu corri pra bola, eu não ouvia nada, e enxergava tudo. Quando ela saiu do meu pé, ouvi todos, e não enxerguei mais nada”.

O empate era nosso. Se não saísse aquele gol, naquela hora, eles, os rivais, com dois a menos, não teriam mais pernas (os pés eles já não tinham desde antes da decisão). Outro minuto o Palmeiras faria o gol do título. Claro. Mas estava escrito naquela constelação: o gol do título, o gol da sagração, o gol da redenção, será daquele que irá levantar os braços, olhar para o céu, e agradecer a Ademir da Guia pela graça concedida.

Graça que veio, que viu, que venceu, que Evair! Um César imperador, como um herdeiro de César Lemos, o Maluco, o santo César que amava o sereno das madrugadas nas glórias das Academias do Palestra Itália.

Evair tanto sabia de bola, tanto sabia de gol, que fez questão, na corrida do título, na carreira de seu caminho para o panteão palmeirense, de olhar o tempo todo para o canto direito baixo, ou melhor, rasteiro, da meta deles. Evair não desgrudou o olho do canto onde chutou. Como se dissesse ao estádio que era nosso: “é aí que vou mandar a bola do campeonato; é aí que vai acabar o jejum; é aí que vai surgir o Palmeiras; é aí que não vai haver dúvida; é aí que vocês podem pular que não vão alcançar; é aí que a bola vai entrar; é aí que é o gol; é aí, Evair”.

Foi ali, Evair, no canto cantado com os olhos. O nove de todos os noves do Palmeiras deu nove passos até chutar a bola da vida. Todos eles com os olhos vidrados no canto onde bateu, no canto onde não estava Wilson, onde não esteve nenhum rival, onde só esteve o campeão.

Do impacto na bola até ela cruzar a linha foram uns 50 centésimos de segundos. As meias e os calções brancos sujos da lama da tarde, a camisa verde e branca limpa da bola brilhante jogada, a grama pisada por aquele time histórico, o choro histérico de uma arbitragem de fato discutível, mas… Um ponto, até as vítimas não discutem: o matador.

Evair bateu o pênalti. Não preciso contar o resto da história. Só preciso contar aos filhos e netos de Evair que ele ainda não sabe o que foi para o Palmeiras.  O que é. O que será para sempre.

Obrigado, único matador que deu a vida.

Obrigado por, 25 anos depois, a nos dar esta história tão linda que parece ficção. A esta epopeia tão perfeita que parece Palestra. A esta história de amor no Dia dos Namorados tão maravilhosa que parece Palmeiras.

E foi.

E é.

Evair!

Parabéns pelos seus 53 anos. Parabéns pelos nossos 27 anos de idolatria.

E nem precisei aqui contar tudo que você fez por nós em 1999.