10 anos depois, seguimos empacados

Foto: Marcos Ribolli/Globo Esporte

*Por Leandro Iamin

Não faz muito tempo que visitei as Laranjeiras, Rio de Janeiro, para cumprir uma pauta ao site Sarriá. A ideia era ouvir sobre aquele estádio que, entre 1919 e 1950, foi o Maracanã antes do Maracanã. Aquele estádio fazia, e faz, divisão de terreno com o Palácio Guanabara, casa oficial dos governantes daquele estado. Muro com muro desde cem anos atrás, o futebol e a política. Curioso. Em uma das entrevistas com Heitor, historiador do Flu, me peguei pensando e mudando o eixo de minha reflexão sobre a reportagem a partir de uma pensata ligeira dele, a qual afirmava ser o Rio, aquele Rio, projetado com dinheiro abundante para copiar algum requinte parisiense em seus aparelhos mais pungentes, na verdade, o milagre das esquinas e dos encontros que nelas aconteciam. Para ler a reportagem, ela está aqui, mas leia depois, que é grande.

Foi outro dia, também, que lancei dedicada reflexão ao novo modelo que quase não aceita discussões contra si acerca da construção de novos estádios. Estava na França, em razão da Eurocopa, a qual fui assistir, realizando um sonho de menino. Os estádios construídos para a competição ficavam todos fora de suas cidades. Não é o caso de questionar a lógica disso, que lógica há: muita gente é bem paga para planejar um estádio que custa muitos milhões, e uma das metas é causar o menor impacto possível na rotina da cidade. Já foi assim que Saint Dennis foi construído no cu de Paris para a Copa de 98. Todos as novinhas arenas de 2016 pareciam naves espaciais descidas no quase-nada, sem conexão com a cidade. Por ele você não passa: se o viu, é porque está indo até ele. Estádios sem esquinas em seus arredores. Sem encontro casual.

A Praça Charles Miller, tão bela, não cabe em nenhum lugar da velha Perdizes – convém citar o "velha", já que agora criaram o "Nova Perdizes", um, digamos assim, "bairro" que emula Dubai e que fica entre o estádio e o centro de treinamento do Palmeiras, com apartamentos que talvez queiram exatamente eles, os atletas do Palmeiras, como donos. Nosso estádio tem esquinas. Nos meus tempos de O Periquitão, na ESPN, falei diversas vezes sobre a natureza absolutamente particular ao redor de um estádio que desafiou o hábito: Beethoven, o poodle cego da senhorinha que mora na Turiassu e que se assusta com fogos de artifício, certa vez, foi colocado como antagonista meu em uma reportagem de TV, colocando, eu de um lado, Beethoven do outro, dois pontos de vista diferentes sobre a região: o torcedor e o poodle. Eu entendo o poodle. Não é nada pessoal.

O que falta mais ser dito, eu não sei. Já virou ação, gesto inclusive político de permanência. Permanecer na rua é opção com viés e mensagem. Em um curto espaço de tempo o Palmeiras saiu de baixo da sola do diabo e viu um presidente emprestar cento e tantos milhões, uma patrocinadora dar mais não sei quantos e um estádio render não sei quantos outros. O presidente, então, afirmou que havia uma gangue de bolivianos ao redor do estádio especializada em furtar celulares. Nunca provou nada do tipo, mas, como não entrou no noticiário como um xenófobo inqualificável, que diferença faz? Este mesmo presidente foi o único dos grandes a faltar em audiência importante que debateria a Torcida Única no futebol, quando cimento do debate ainda estava fresco. Está secando.

Ninguém sabe, mas minha primeira chance de atuar no jornalismo esportivo veio após um texto de minha autoria sobre a violência policial após a conquista do campeonato paulista em 2008, portanto dez anos atrás. No texto, descrevia a brutalidade gratuita do efetivo policial, mas não me esquecia do dia da compra de ingressos, fila na porta, todo mundo espremido e alguns sócios, de dentro dos portões do clube, mostrando os ingressos para os amontoados do lado de fora, humilhando-os. Me diga você se acha que as coisas mudaram muito ou pouco ou nada na última década, além da fila ser virtual e do estádio ter sido reformado – com tudo que isso implica. Estamos empacados.

Mais uma vez a polícia não consegue justificar a violência usada após um título do Palmeiras na rua onde vive o Palmeiras – onde mais poderiam estar? Folgo em notar que o tema não parece tão relevante assim para os jornais. Não tem um jovem disposto a ligar para a PM e pedir sustentação técnica do seu ato? Imagens que provem a alegação de que foram, antes, atacados do nada com paus e pedras (um prêmio para quem achar uma pedra na Turiassu)? E os jogadores, tão assíduos nas redes sociais, não podem responder sobre o que acham disso? Afinal, quem se importa com o torcedor de futebol? Que milionários não compram a briga da plebe, eu já sei, um dia cairão algumas migalhas e ficaremos felizes. Mas uma nota contundente, técnica, madura, sobre o pós-jogo de domingo, juro, contribui mais para o futebol do que os primeiros passos das especulações de mercado de um futebol que ficará quase dois meses sem jogos.

Porque é deste silêncio que são feitas, também, as bombas que traumatizam crianças na porta do estádio. O estádio é o coração, as ruas pequenas da velha Perdizes são as artérias, nós somos o sangue. Talvez a PM seja literal demais para entender isso. Quem luta por uma rua livre em dias de jogos do Palmeiras é encarado pelos de longe como idealistas solitários, mas deem voz, espaço, para esta pauta, e terão surpresas a respeito o desaforo represado no peito de muita gente em muita porta de estádio por aí.

O momento do Palmeiras é apenas o mais robusto, dado o sucesso econômico do projeto de arena e as conquistas em campo. Estão criando uma tensão em todas as canchas. Não coube só ao palmeirense notar Major Olimpio, um declarado inimigo radical da cultura de arquibancada, dando medalhas aos jogadores. O ponto de saturação daquilo que um dia o promotor Paulo Castilho chamou de "Terra de Ninguém" vai chegar. Somos muitos "Zés Ninguéns" e "Marias Ninguéns", pode crer.

Vai ver é coisa do mundo sem esquinas. A experiência civilizatória despedaçada em uma cidade no auge da hostilidade e da miséria intelectual passa pela reflexão, também, do que é uma arena projetada com tantos camarotes. Estamos em um estádio de futebol para assistir a um jogo, e seus jogadores. Fora dali, cada vez mais, a briga é predatória por uma palavra da salvação, um vidro blindado, um salário bonito, uma pulseira VIP.

Quando os homens do camarote descem ao gramado, levantam uma taça e dão volta olímpica e saem na foto do título mesmo sem ter nenhuma ligação com a campanha, eu paro e penso: "isso tá errado. Nem se fosse o Presidente!". E era. Os que descem dos camarotes são cobiçados e bajulados. Mais aplaudidos do que aqueles que estão suados vestindo chuteiras. Sinais identitários de uma sociedade que apodreceu. A volta olímpica é dos jogadores. As esquinas são nossas.