O assassinato do drible

Driblar virou pecado no Brasil. Quase um atentado ao pudor, crime lesa-pátria ou adultério. Driblar se tornou ato egoísta, egocentrista e covarde. Antes arte, fintar agora é asqueroso, humilhante. São pouquíssimos os meliantes nacionais que ainda ousam tal absurdo. Ficar com a bola por aqui é ir contra os analistas maquiavélicos que só enxergam os números, as linhas de quatro e o atacante que marca o lateral. É retroceder ao que chamam por aí de modernidade.

A modernidade é cada vez mais limitar o drible. O espaço tem ganhado do tempo e do improviso. A função tática, geralmente quebrada pelo drible em outros tempos, hoje faz o talento ser uma desobediência. Neymar e mais alguns gatos pingados ainda tentam sorrir jogando futebol. Jogando o futebol sisudo e rabugento que se vê por aqui, mas geralmente eles – os que têm talento – fazem isso lá fora. O brasileiro não permite. É chato, morno e sem graça. Penas graves são aplicadas: chutes, pontapés, socos, rasteiras e apelidos são distribuídos. Geralmente quem dribla é chamado de jogador de segundo tempo. “Não serve para começar jogando”, analisam os cheios de razão.

Keno é um dos poucos soldados do drible. Dribla de direita e de esquerda. Limpa, ginga, finta. Abre espaço. Quebra linhas. Passa por adversários. Segura a bola, desenha e brinca. Trata com carinho, mesmo que o tratem com carrinho. Corre e, se ainda der tempo, tenta achar algum companheiro. Não é objetivo. É adjetivo. O primordial é driblar. É sorrir levemente. É fazer sorrir quem vê. É errar e não provocar raiva no torcedor. Torcedor que – injusto e ingrato – o chama de jogador de segundo tempo. É a punição mais grave que um driblador pode receber. O elenco do Palmeiras é ótimo, mas muitas vezes Keno foi trocado por quem passa a bola apenas de lado e não compromete. Por quem marca mais em campo do que marca na memória. Eis a preferência de muitos. E olha que Keno não é craque. Bem longe disso.

Dá para jogar bem futebol cumprindo funções táticas. Óbvio. Mas que a missão não seja extinguir a naturalidade e a arte do drible. Que ainda exista um pouco de mistura diante de tanto arroz e feijão,

É a característica, a essência e a naturalidade que estão morrendo. Morrendo com Garrincha, que teria – nos novos tempos – de marcar o lateral muito mais do que atacar o zagueiro. Morrendo prematuramente. Morrendo nos números e nos punhos. Hoje, Neymar abre seu estoque de chapéus, canetas e golaços na França. É recompensado com críticas, arranhões, cortes e lesões. De tanto apanhar, responde com ironia. Ironicamente perde na discussão diante do exército que se formou na imprensa e na prancheta. Vamos aos poucos detonando a alegria. Golpe por golpe, análise por análise.

Um minuto de silêncio. Calaram o grito de olé.

Que Deus não perdoe os assassinos do drible.