Recordação

 

‘Pai, quem fez esse gol?’, mostrou o menino, apontando para o computador. Na tela, uma cobrança de falta quase que do meio de campo. Bola centralizada. Peito do pé, uma pancada na gaveta. Golaço do Palmeiras. ‘O Alceu, meu filho’, respondeu o pai, entusiasmado com o novo interesse do pequeno por futebol. ‘A gente ganhou por quatro a dois naquele dia. Foi no antigo Palestra Itália, que era o nosso estádio antes da reforma.’

‘Lindo. Fora do comum. Maravilhoso. Excepcional’. Palavras ditas por Ulisses Costa naquela transmissão. O som do rádio embalava o gol no Youtube, vestia a pancada de Alceu. Nem pai e nem filho diziam mais qualquer palavra. Os olhos pararam apenas para admirar uma pintura, devidamente desenhada em 2006. ‘E esse Alceu era um craque, né, pai?’, perguntou o menino, com certeza no tom de voz. E aí começou o contraste.

‘Alceu era um dos piores jogadores que eu vi jogar, meu filho’, argumentou sem pensar. ‘Mas pai. Não pode ser’, duvidou o moleque. Que continuou: ‘Olha esse chute do cara. Se colocar Dudu, Borja, Lucas Lima e Moisés juntos não vai ser igual. Ele só chuta mais fraco do que o Ricardinho’, exagerou o filho, ao citar Ricardinho, oito anos, seu amiguinho da escola. O pai riu. E percebeu como é injusta a tecnologia.

Nesse momento, convencido a mostrar ao menino o verdadeiro (falta de) talento de Alceu, ele assumiu o teclado do copulador e começou a procurar desesperadamente vídeos no Youtube. Digitou várias palavras para tentar encontrar algo que comprovasse sua teoria: Alceu grosso; Alceu cabeça de bagre; Alceu ruim; Alceu pior camisa 10 da história do Palmeiras (sim); Alceu perna dura. E nada. Não encontrou qualquer registro.

Só encontrou a famosa cobrança de falta em 2006. Reparou em sua casa e lembrou um famoso texto do cronista Antonio Prata, o ‘recordação’, publicado na Folha de SP. Via fotos da família em festas. A esposa toda produzida. O filho de terno e gravata. Ele no jet ski do primo em Angra. Achou fotos da família na única viagem que fizeram em oito anos, para Salvador. Mas não era a família. Não era a família como ela de fato é. Não tinha qualquer imagem que detalhasse a rotina dos três: não tinha em casa fotos dele assistindo o jogo do Verdão com o filho na sala; nem da esposa abraçada com ele no sofá; não tinha retrato da faxina que ele faz todas as quintas, mas tinha da única pescaria e do único peixe fisgado por seu filho.

Assim como o único registro de Alceu na internet é um golaço, o homem só tinha reproduções de um passado que na verdade pouco viveu. Ou nada viveu. Alceu, que sequer chegou perto de ser um jogador minimamente aceitável para uma equipe grande, ficou gravado na eternidade como autor de um gol monumental.

‘Vou jogar hoje a tarde com meus amigos e vou dizer que sou o Alceu. Cansei de ser Dudu, Moisés e Borja. Agora sou Alceu, papai’, disse o pequeno, correndo para a quadra do prédio. E o pai aceitou, diante do que teve de engolir a seco: ‘nem sempre as coisas são o que parecem ser’, filosofou a noite toda.

E viu o quanto pode ser mentirosa a memória tecnológica. Ou a falta de.

‘É Alzheimer’, decretou. ‘Só pode ser’, concluiu. Não tão bem quanto Alceu contra o Paraná, mas concluiu. Tristemente.